Fiódor
Dostoiévski (1821-1881) é considerado por muitos estudiosos um legítimo filósofo
da religião. Crime e Castigo, sobre a qual versamos, está entre as maiores obras
da literatura mundial. Com “Os irmãos Karamazóv” o autor garante sua posição de
maior escritor russo, junto com Liev Tólstoi.
Nesse dramático romance psicológico, que também podia intitular-se “Pecado e
Expiação”, Dostoiévski explicita sua censura ao niilismo (o nada, o vazio), a
falta de sentido e de valores de sua época. Faz uma crítica mordaz ao
maquiavelismo, à ganância da lógica sobre a consciência.
Em Crime e Castigo, é com esforço e privações econômicas que a família do jovem
Raskólnikov se empenha para mantê-lo no curso de Direito, esperançosos em vê-lo
triunfar, vencer na vida.
Órfão de pai, o estudante tem somente sua doce mãe, Pulkéria Raskólnikova e a
virtuosa e bela irmã, Dúnia, distantes da pujante São Petersburgo.
Inteligente, o rapaz amealha alguns trocados traduzindo obras, dando aulas
particulares e começa também a escrever artigos. Mora num cubículo insalubre,
deve uma quantia considerável à locatária e, se não fosse pela boa-vontade da
criada da pensão, Nastácia, passaria fome.
Interrompendo voluntariamente essas atividades, sua subsistência, cuja
precariedade revelava-se também em seus trajes, abate-o de tal forma que se vê
obrigado a trancar a matrícula da faculdade. Passa dias e dias inteiros
prostrado em seu leito, numa melancolia profunda, maquinando um modo de transpor
sua pobreza.
Disse Lutero que “cabeça desocupada é oficina do demônio”. Assim, sua mente
vazia torna-se solo fecundo para que o diabo semeie os mórbidos pesadelos que o
desespero produz.
Ele conhece a agiota Alena Ivánovna, a quem, por uma miséria, empenha um relógio
de prata que fora de seu pai. A velha usurária sabia explorar, sem dó nem
piedade, os necessitados que lhe batiam à porta.
Embora recluso e avesso às pessoas, Raskólnikov sente que o convívio com seus
semelhantes lhe fará bem ao espírito. Decide então ir a uma taverna e lá conhece
o bêbado Marméladov, com quem simpatiza de cara. Mesmo a contragosto, inteira-se
sobre toda vida daquele senhor: contraiu segundo matrimônio com a viúva
Ekaterina, já mãe de três crianças pequenas (9, 3 e 2 anos) e tem também uma
mocinha de dezoito anos, Sônia, de seu primeiro casamento.
Sônia “era uma moça modesta e pobre, de maneiras honestas e humildes”, Instigada, na verdade, coagida pela madrasta, se prostitui para ajudar a
alimentar os meio-irmãos e sustentar o vício do pai, Marméladov. “Ah! Sim,
Sônia! Acharam nela uma boa vaca leiteira! E sabem explorá-la! Isso não lhes
embrulha o estômago; já estão habituados... A princípio deitaram umas lágrimas;
depois, com o tempo, veio o hábito. O homem é pusilânime [medroso, covarde,
indeciso], conforma-se com tudo”.
A situação financeira dessa família é a pior possível: devem aluguéis da pocilga
onde moram, mal têm o que vestir. Asseada, Ekaterina lava os andrajos à noite
para ter o que pôr nos pequenos durante o dia que, às vezes, chegavam a três
dias sem ver uma fatia de pão e choram de fome. Raskólnikov vem a conhecê-los
pessoalmente e, generoso, não titubeia em dar-lhes seus últimos copeques.
O estudante recebe uma carta de sua zelosa mãe com a notícia de que Dúnia, a
adorada e distinta irmã decidiu aceitar o pedido de casamento de Piotr
Petróvitch Lujin que, no alto de seus 45 anos, é um advogado bem colocado na
vida. Ao ler na carta que o pretendente “(...) estava resolvido a não casar
senão com uma menina honesta, sem dote, e que tivesse tido privações. Na opinião
dele é para desejar que o homem não deva obrigações à esposa; antes é
conveniente que ela veja no marido um benfeitor” é despertado em Raskólnikov um
ódio mortal por esse oportunista tão ardiloso e vil.
Raskólnikov não se enganara! Dostoiévski descreve as idéias do noivo: “Com
prazer secreto ruminava no pensamento a figura de uma moça – virtuosa, pobre
(devia ser pobre), jovem, bela, de boa condição social e instrução, tímida, que
muito sofrera e fosse humilde em relação a ele, uma que o olhasse o resto da
vida como o seu salvador (...) a beleza e a instrução de Dúnia o impressionaram
(...). Estava retratada nela a moça de brio, caráter, virtude, de instrução e
polidez superior à dele (ele o sentia), e esta criatura sentir-se-ia
submissamente agradecida a ele, para o resto da vida (...), ele teria absoluto e
irrestrito domínio sobre ela. (...). Sabia que as mulheres são grandes
auxiliares. O fascínio de uma mulher encantadora, virtuosa e polida podia tornar
o caminho mais fácil, graças ao poder de atrair pessoas; por outro lado, cercava
o marido de uma auréola”.
Conhecedor dos nobres valores da irmã (“A sua liberdade, a sua alma, eram-lhe
mais caras do que o bem-estar”), essa decisão embaraça-o mais ainda: “Ora, o
motivo é bem claro; não procede em proveito próprio. Para conseguir o seu
bem-estar ou para escapar à morte, é certíssimo que ela não se venderia; mas
vende-se por outra pessoa, por um ente querido, adorado! Eis a explicação do
mistério: é por nós, por mamãe e por mim, que ela se sacrifica. Vende-se
completamente! Oh! Nesse caso violenta-se o senso moral; leva-se ao mercado a
liberdade, a paz, a própria consciência, tudo, tudo! (...) Mas isso que elas vão
fazer se assemelha a aceitar a sorte de Sônia, a eterna Sônia, que há de existir
enquanto houver mundo! (...) Pois bem, se não pode haver amor, nem estima (...),
em que difere esse casamento da prostituição? Mais desculpa tem a Sônia; essa se
vendeu não para aumentar um certo bem-estar, mas porque via a fome, a verdadeira
fome, portas adentro!”. E vale dizer que, se Sônia se via obrigada a negociar o
corpo, jamais corrompera sua alma.
Em meio a tudo isso, há mais de um mês uma obsessão tomava por completo os
pensamentos de Raskólnikov: assassinar e roubar a velha agiota, resolvendo de
vez seu problema! Isso lhe martelava a cabeça o tempo todo, de modo cada vez
mais insistente.
Uma teoria à qual se detia com freqüência era a de que, no mundo, havia duas
categorias de homens: os ordinários e os extraordinários. Raskólnikov começa a
se imaginar um desses homens extraordinários, acima do bem e do mal, acima da
lei!
Doentio, como não pensava em outra coisa, elegendo um machado por arma do crime,
comete um duplo homicídio: o premeditado, da velha e o da irmã dela, Lisavieta
(Isabel), por quem é inesperadamente flagrado. Rouba dinheiro e jóias. Mas o
tormento o persegue e não permite sequer que se atenha ao conteúdo do roubo.
Esconde-o embaixo de uma pedra.
Raskólnikov está tão desnorteado que não consegue mesmo afastar-se do
inteligentíssimo juiz de instrução do crime, Porfíri Petróvitch que, observador,
já começara a desconfiar do comportamento do rapaz. Para esse astuto juiz, o
criminoso se revela por sua conduta. A natureza não falha, aposta ele.
Começa então um imperdível jogo de gato e rato entre eles. Num dos encontros que
tiveram, Porfíri Petróvitch, comentando o que Raskólnikov publicara, diz: “No
artigo de que se trata, os homens são divididos em ordinários e extraordinários.
Os primeiros devem viver na obediência e não têm o direito de desrespeitar a
lei, porque são ordinários; os segundos têm o direito de praticar todos os
crimes e de violar todas as leis, pela simples razão de que são criaturas
extraordinárias. Foi isso o que o senhor disse, se não me engano”.
Raskólnikov responde: “Eis o que disse: o homem extraordinário tem o direito não
oficialmente, mas por seu próprio alvedrio [vontade própria], de autorizar a sua
consciência a saltar sobre certos obstáculos, no caso especial que assim exija a
realização da sua idéia, a qual pode por vezes ser útil ao gênero humano. (...).
Recordo-me de que em vários pontos do artigo insisto sobre a idéia de que todos
os legisladores e guias da humanidade, a principiar pelos mais antigos, para
continuar em Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão etc., que todos, sem exceção, foram
criminosos, promulgando novas leis, violando portanto as antigas, observadas
pela sociedade e transmitidas pelos antepassados; certamente eles não recuavam
ante a efusão de sangue, desde o momento em que ela podia ser-lhes necessária. É
notável até que quase todos esses benfeitores e guias da espécie humana foram
sanguinários. Portanto, não somente todos os grandes homens, mas todos os que se
elevam um pouco acima do nível comum, que são capazes de dizer alguma coisa de
novo, devem por sua própria natureza ser naturalmente criminosos, mais ou menos,
é claro. Em suma: o senhor vê que, até aqui, não há nada de novo em meu artigo.
Isso tem sido dito e impresso muitas vezes (...). Quero estabelecer o princípio
de que a natureza divide os homens em duas classes: uma inferior, a dos
ordinários; espécie de matéria, tendo por única missão reproduzir-se; a outra
superior, compreendo os homens que têm o dever de lançar no seu meio uma palavra
nova. As subdivisões apresentam traços distintos bem característicos. À primeira
pertencem, em geral, os conservadores, os homens de ordem, que vivem na
obediência e têm por ela um culto. Em minha opinião, são até obrigados a
obedecer, porque é essa a missão que o destino lhes impõe, e isso nada tem de
humilhante para eles. O segundo grupo compõe-se apenas de homens que transgridem
a lei, ou tentam transgredi-la, segundo os casos. Naturalmente os seus crimes
são relativos e de uma gravidade variável. Mas, se em defesa da sua idéia, forem
forçados a derramar sangue, a passar sobre cadáveres, eles podem em consciência
fazer uma coisa e outra – no interesse dessa idéia, é claro. É nesse sentido que
o meu artigo lhes admite o direito ao crime. (O senhor lembra-se de que o nosso
ponto de partida foi uma questão jurídica.) Demais não há motivos para nos
inquietarmos a esse respeito: quase sempre as massas não lhes reconhecem esse
direito: cortam-lhes a cabeça ou enforcam-nos (mais ou menos) e, desse modo
exercem a sua missão conservadora até o dia em que essas mesmas massas erigem
estátuas a esses mesmos supliciados e os veneram (mais ou menos). O primeiro
grupo é sempre senhor do presente, e o segundo é senhor do futuro. Um conserva o
mundo, multiplica-lhe os habitantes; o outro move o mundo e o dirige.”
O fiel e ético amigo de Raskólnikov, Razumikin, intervém indignado: “(...) Essa
autorização moral de matar é em minha opinião mais espantosa do que a
autorização legal...”.
Nastácia, comentando o crime que indignou a todos, revela que Lisavieta (Isabel)
havia costurado, de graça, uma roupa de Raskólnikov. Lembrar-se desse comovente
episódio o angustia e o faz descobrir que não é um homem extraordinário: sua
consciência o trai, ele fica terrivelmente doente, febril, delirante, fraco. Sua
vida se instala num inferno. Sem um minuto de paz, cogita se entregar à polícia.
Mas eles (exceto o desafiadoramente enigmático juiz Porfíri) de nada desconfiam,
nem têm provas. E ele recua.
Chegando aos capítulos finais da obra, Raskólnikov está irreversível e
decididamente paranóico: “Como ousei derramar sangue?” (...) “Eh! Sou um verme
esteta, nada mais”.
O martírio provoca-lhe conversões. Sobre o desfecho dado pelo autor, como
salienta o maior especialista em Dostoiévski, Luiz Felipe Pondé (PUC-SP): “Seu
otimismo – que é característico da mística ortodoxa – aparece de forma clara no
final de Crime e Castigo, naquilo a que os ortodoxos chamam metanóia, um
conceito grego para explicar a idéia de transformação do indivíduo a partir das
contínuas visitas que Deus faz à sua alma. (...) De acordo com Dostoiévski, por
mais que o indivíduo tente ser mau – a modernidade talvez consiga, mas até então
não tinha conseguido –, existe uma centelha que sempre, de alguma maneira, fica
atormentando a pessoa”.
Responsável pela conversão de Raskólnikov é o exemplo de santidade de Sônia. Sua
graça, doçura, sua simplicidade e fé em Deus é o antídoto à desgraça, do estar
distante de Deus, que cegou Raskólnikov. É a ela que ele confessa seu crime. Aos
prantos, beija-lhe os pés. É com o amor dela que ele contará para subir seu
calvário e cumprir sua expiação na Sibéria. |