Princípio Constitucional do Estado Democrático e Direito Natural [*]
artigo originalmente publicado na
"Revista Internacional d´Humanitats", número 09, 2006 - p.
publicação conjunta:
CEMOrOC-USP; Universidade Autónoma de Barcelona
Marcelo Lamy
EMENTA: Introdução. 1. Atual falseamento da democracia. Política como prática de mercado. Da falsa opinião pública. Fabricação da opinião pública. Da manipulação da comunicação. Da ilusão de participação. Escolha heterônoma, não autônoma. O critério da maioria e o espiral do silêncio. Do perigo do ideal representativo. Liberdade Individual e Liberdade Política. 2. Resgate do significado e do sentido da democracia. Democracia, Direito Natural. Significado da Liberdade. Romper principal obstáculo externo da liberdade: a manipulação. Romper obstáculos pessoais da liberdade. Desafios da Liberdade Política. 3. Constitucionalização da Democracia. Noção de Princípio. Princípio como norma jurídica. Princípio constitucional. Princípio Constitucional Democrático. Dimensões jurídicas do princípio democrático. Conclusão.
O anseio pela democracia (demos = povo; kráthos = poder) moderna (representativa e indireta = poder nas mãos da maior parte representada), não é diferente do anseio pela democracia antiga (direta = distribuição do poder entre todos os cidadãos livres); pois é o anseio pela autonomia, pela liberdade na pólis, por deixar de ser massa informe, sem opinião.
Para resgatarmos este sentido original e revigorar o atual, percorreremos neste texto primeiramente o estado atual de falseamento da democracia, para posteriormente contrapormos ao conceito radical de Liberdade e de Princípio Democrático que permitirão reconstruirmos o princípio constitucional do Estado democrático.
Política como prática de mercado
A atividade política, nos dias de hoje, é despolitizada e convertida em uma prática de mercado. Tanto isto é verdade que se fala em marketing político. Reduziu-se a nada mais do que uma negociação e barganha de certos grupos junto às massas na competição pelos postos de governo. No mercado político é oferecido a solução dos problemas sociais e econômicos que teoricamente as massas apresentam. Não há propriamente cidadãos ativos, apenas uma massa passiva de demandas.
Da falsa opinião pública
A opinião pública, no senso comum, é fruto do debate de idéias conflitantes estabelecida através do discursos, reflexões e ponderações de grupos, indivíduos e especialistas.
No entanto, atualmente inexiste uma verdadeira opinião pública. O que temos é a aparente opinião pública fabricada nos meios de comunicação. Sob os imperativos da comunicação de massa, a opinião pública passou a se identificar com os resultados da “sondagem de opinião”.
Acontece, no entanto, que do ponto de vista lógico a sondagem não capta a opinião, mas o que está escondido, emudecido no espaço privado: “Agora, entende-se por opinião o fundo emocional silencioso que é atraído à superfície pela fala do 'sondador' (...) De reflexão e ponderação em público tornou-se o grito inarticulado que se dirige ao e contra o público – desabafo dos sem-poder captado pelo mercado político para ser convertido em 'demanda social' e para ser trabalhado pelas 'elites' a fim de convertê-lo em mercadoria oferecida pelos partidos aos cidadãos” [1].
Fabricação da opinião pública
Por outro lado, a sondagem visa também produzir opiniões, pretensamente racionalizando as emoções. Acaba por orientar o povo conforme sua própria forma de pensar.
É certo que os meios de comunicação são garantia da liberdade de expressão, da liberdade de informar-se e de informar. Mas também são meio de poder, e podem converter-se em instrumento de manipulação.
A pior manipulação dos nossos dias é a do esvaziamento da reflexão, é a da instauração do darwinismo da comunicação: a sensação de que em matéria não técnica tudo é opinável e devemos considerar a opinião de todos (sobretudo de nossos ícones da cultura filistéia).
Gregório Marañon já nos dizia: “as massas movem-se pela emoção, pelas sugestões dos gestos, quer dizer, pela simpatia ou antipatia, e, jamais, pela reflexão” [2]. É assim de fato, pois o receptor recebe a mensagem, se interessa por ela, mas não a entende, nem tenta a compreender, e a processa acriticamente, como uma verdade inatacável.
Da manipulação da comunicação
“Assim acontece muitas vezes na gênese dos heróis na consciência popular: o subconsciente das massas oprimidas empresta-lhes qualidades opostas às dos odiosos tiranos. Às vezes, esse mito, tal a sua força, acaba por criar uma realidade e fazer surgir no herói virtudes que ele não possuia. Muito do que há de bom e de mau nos homens públicos é criado pelo consenso das multidões (...) Não cabe discutir aqui se nesse entusiamo (...) há mais mito do que realidade (...) o povo, eterna criança, acredita...” [3].
Stalin afirmava que o meio mais eficaz que os Estados modernos possuem para dominar as gentes não são as armas, mas os vocábulos do dicionário. Que palavra é poder já nos ensina Hesíodo em sua obra Teogonia. Ortega y Gasset pedia que tomássemos cuidado com os termos, pois entendia que estes são os déspotas mais duros que fazem a humanidade padecer. O filósofo Heidegger certeiramente pontuava que as palavras são a pouco, na história, mais poderosas que as coisas e os fatos.
Usam-se, na comunicação em massa, como nos alerta Alfonso Lopez Quintás [4], palavras “talismã” com o intuito de esvaziar a reflexão. Há certos termos que parecem albergar, de tempos em tempos, o segredo da autenticidade humana. No séc XVII isto aconteceu com a palavra “ordem”, no sec. XVIII, com a “razão”, no séc. XIX com a “revolução”, no séc. XX até hoje, com a “liberdade”. Todos são a favor da liberdade, mas poucos sabem o que significa. Apesar disso, colocar-se ao seu lado traz automaticamente prestígio, mesmo que seja ao lado dos vocábulos dela derivados (democracia, autonomia, independência – palavras talismã por aderência). Por sua vez, questioná-la desprestigia automaticamente, mesmo que a oposição não seja verdadeira (pensemos no defensor da auto-censura).
Marañon ao biografar a vida do imperador romano Tíbério, relata-nos típica expressão talismã de todos os tempos: “Os povos descontentes tudo esperam dessa palavra mágica: mudança de governo. Mas a multidão nunca imagina que pode perder na troca. Os dias de mudança sempre são os de maior regozijo popular, sem que se turbe o alvoroço pelas recordações das infinitas decepções” [5].
A comunicação em massa sempre manipula ao apresentar-se reducionista, ao nos tratar ou meramente como clientes, ou como seguidores, ou como súditos e não como pessoas. Manipula ao nos tornar objetos de domínio, para manejar nossa conduta, sem nos dar oportunidade de pensar. A grande força da manipulação advém da confusão de conceitos e da rapidez da resposta que não nos permite tempo de análise.
Da ilusão de participação
A atividade política gerencia uma demanda de sentimentos, de emoções revestidas de um mínimo de reflexão para ofertar uma “dominação carismática”, como já a intitulava Max Weber.
Esta realidade cria a ilusão da participação, pois faz os cidadãos crerem que a exposição de suas angústias e desejos primitivos os convertem em sujeitos políticos ativos. Faz do desabafo uma atuação política, pois a despolitização só é eficaz com a presença desta ilusão democrática.
Assim, já nos alertava Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “não é difícil a um governo totalitário tornar-se aos olhos do povo o mais democrático dos regimes, por fazer aquilo e só aquilo que o povo 'quer', isto é, aquilo que foi instilado nesse mesmo povo pela sua propaganda” [6].
É certo que a história sempre nos ensinou que para exista liberdade é preciso um mínimo de propriedade, de igualdade e de segurança, senão transformamo-nos em metecos, estrangeiros, refugiados, acossados na própria terra, que não têm como aspirar nada além do receber o alçar aos iguais, que não passam fome, possuem escola, emprego e não convivem diuturnamente com a violência.
Em razão disso, vemos a política atual do mero sanar estes elementos prévios à liberdade e não a política do decidir compartilhado dos rumos públicos.
Escolha heterônoma, não autônoma
O máximo de manobra que nos resta é a da escolha do que nos é ofertado. Não nos cabe decidir o que queremos que seja ofertado. Ou seja, nosso espaço político hoje reduz-se ao da heteronomia (escolha das propostas alheias) e não ao da autonomia (capacidade interna de dar a si mesmo seu próprio caminho) que funda o anseio de democracia.
O critério da maioria e o espiral do silêncio
Os meios de comunicação constituem hoje, pelo divulgar de suas sondagens, o entorno da submissão e do silêncio, pois a maioria dos indivíduos foge ao isolamento que suporia mostrar-se distinto do que aparentemente pensam os demais. Acaba por calar-se. Quem é levado a pensar que sua idéia é minoritaria ou está em retrocesso tende a não tomar parte na conversação. Ao contrário, quem pensa estar apoiado pela minoria que crê que será majoritária no futuro, tende a manifestar sua opinião.
Em consequência, as minorias convencidas de seu futuro majoritário são as que mais se manifestam, e isso faz que pareçam mais fortes do que realmente são e cresçam mais. No entanto, a maioria cai em um espiral de silêncio que lhes faz perder força e convicção e lhes leva a converter-se em minorias.
Do perigo do ideal representativo
O corolário desta “apatia” (ausência de pathos, paixão) política é a entrega incondicional das decisões públicas aos representantes.
Todo Estado moderno tido como democrático perpassa por este pressuposto, o da representatividade. As possíveis bases teóricas da representação, no entanto, alertam-nos para a sua desvinculação democrática. Vejamos.
A representação advém, na concepção teológica, de uma autorização a se ter o poder, recebida de Deus. Representa-se quem governa (Deus), não os governados. A fonte do poder é Deus.
Hobbes (Leviatã) apresenta modelo onde os súditos alienam seus direitos de forma irrevogável. A fonte apenas original do poder é o povo.
Na concepção liberal de Stuart Mill e de Benjamin Constant não se representa aos eleitores, mas a razão universal. A fonte do poder é a “razão”. O povo apenas escolhe o representante, mas este desencarna-se de sua origem, pois representa a vontade geral racional. Governa, de fato, quem representa.
Para Monstequieu o homem geral não tem capacidade para bem apreciar e consequentemente bem decidir s problemas públicos, tem apenas capacidade de identificar, no seu círculo de convívio (realidade hoje impossível de ser cogitada), os que são mais capazes. Em seu modelo, portanto, a democracia está apenas na origem do representante, não na representação.
O movimento operário do século XIX é quem vincula, de certa forma, o tema da representação à democracia, pois passa-se a entender possível a representação de grupos ou classes, a representação é vista não como estar no lugar de, mas agir em nome de.
No socialismo, por sua vez, representa-se apenas a classe excluída, o que importa é o direito de decidir a coisa pública em nome de direitos coletivos dos excluídos.
Na concepção partidária, os Partidos assumem a mediação, tornam-se o canal político de representação. E ali se desvirtua a representação, pois estes ou são clientelistas, ou populistas ou vanguardistas. Os “clientelistas” articulam-se nos favores, os “populistas” articulam-se como tutores do povo imaturo, incapaz de decidir por si, os “vanguardistas” têm em seus programas a justicativa de desvincular-se dos interesses populares reais.
Liberdade Individual e Liberdade Política
Nosso atual anseio por liberdade se reduz, muitas vezes, como já nos alertava Benjamin Constant [7], a mera liberdade individual (liberdade de defesa da esfera individual): não estar submetidos senão às leis, não ser detido, preso, morto, nem maltratado arbitrariamente, dizer nossa opinião sem consequências, escolher nossa profissão, ir e vir, não dar conta à ninguém de nossos passos, reunir-se sem empecilhos, etc. O individualismo perpassa o atual pensamento mítico sobre a democracia, pois nosso imaginário foi construído pela cultura e pela promessa de felicidade do “meu” e do “fazer”. Transformamos tudo em posse, inclusive as pessoas (minha esposa, meu filho, meu amigo, meu trabalho, meu cargo...) e tudo sob a ótica de uma prática fabril (fazemos amor, fazemos amizades...).
Não há preocupação que afete nosso dia a dia com a liberdade política (preocupação central dos antigos gregos, pois o coletivo embebia o pensar mítico democrático da idade dos heróis trágicos [8]): decidir sobre as coisas públicas (voto ou mesmo o referendo ainda tem que ser obrigatórios), opinar sobre o destino das verbas públicas (só não admitimos o desvio da corrupção), etc.
Neste sentido, já nos alertava Paulo Ferreira da Cunha, dizendo que hoje “se esfuma a radicação ou a sensação de pertença emotiva-relacional-territorial (da vizinhança, às amizades, à terra natal, ao município – ao próprio país)” [9]. Assim perdemos a liberdade de participação.
Nossa existência individual não está mais embebida nesta consciência política, salvo em arremedos de solidariedade ou de mera curiosidade pelos desvios da corrupção de alguns homens públicos.
Nesse sentido, o instituto da representação isenta-nos desta responsabilidade. Delegamos a uns eleitos a preocupação que não queremos que ocupe nossos dias. Ocorre que nossa irresponsabilidade transferiu-se para nossos representantes, que eleitos desvinculam-se dos interesses que os elegeram. Talvez nesta constatação possamos explicar porque a modernidade construiu uma democracia representativa que excluiu o conteúdo social, pois a representação indireta está mais afeita aos desmandos e desmedidas, a hýbris.
Esta cegueira da desvirtuada independência privada que nos apossa impede-nos de constatar elemento muito singelo: as decisões públicas afetam nossa vida individual mais do que imaginamos. E os depositários da autoridade não deixam de nos exortar que continuemos nesta atitude, que eles cuidarão de todos.
Longe devemos estar de renunciar qualquer espécie de liberdade. Precisamos, portanto, nos re-educar no interesse público, afastando nossa contínua distração da liberdade política [10]. Assim como defendemo-nos de qualquer turbação em nossas liberdades individuais, devemos reivindicar a condução dos negócios públicos.
O problema atual da democracia é, preservando um legítimo individualismo, despertar a disposição permanente (areté, excelência, virtude), a inquietação constante pela autodeterminação política que substitui a democracia governada pela democracia governante. Esta nova adesão da alma que pleiteamos, no entanto, só pode ser construída pela reivenção do “mito democrático” e do “mito liberdade”, pois somente o mito pode atingir de maneira eficaz e continuamente presente o imaginário coletivo, retirando esta espécie de desconsolo que nos assola frente aos desparates da atual democracia [11].
Nossa cultura aceita como evidente que a exaustão aparente do recente ciclo autoritário só pode ser substituída pela democracia. Ocorre que este novo ciclo precisa ser construído e a base funcional desta nova fase é constituída de homens que não perderam a marca indelével do autoritarismo e da heteronomia em seu atuar cotidiano.
A democracia representa a forma mais alta de organização política: torna-se, portanto, ideal e desafio. Como ideal perquirimos sua natureza, como desafio, as condições históricas e socias concretas que se oferecem para sua efetivação, a democracia possível [12].
Como ideal apresenta-se superior não em termos de útil ou de eficiente, mas em termos de “bem” melhor, de mais perfeito. Adquire, portanto, espaço de significação axiológico, ético (entendida ética como o domínio da auto-realização). É na democracia que se torna possível o “exercício político da liberdade”. Dizendo de outra forma, é a idéia de liberdade a matriz conceitual do conceito de democracia.
Democracia, Direito Natural
Sendo fruto da liberdade, a democracia carrega, como sua predecessora, o mesmo característico desta: sua conaturalidade com a própria idéia de homem: “a liberdade é de tal modo conatural ao Homem que não poderia haver sociedade de Homens que, nas suas leis fundamentais, espontanea e livremente surgidas, se não inscrevesse a liberdade ao menos como aspiração” [13].
A liberdade é decorrência necessária da natureza racional e volitiva do homem, mas também da sua natureza política. Assim sendo, a busca da autonomia individual e da autonomia política são facetas da mesma liberdade. A completude deste desiderado de realização do homem deve densificar as duas facetas desta realidade.
É preciso, para tanto, quebrar o escamotear da liberdade individual produzido pelo individualismo exacerbado, bem como o da liberdade política, vivida em formalismos utópicos que fazem esvanecer nosso “animal político”.
Quando o homem perde-se a si mesmo, perde seu rumo, seu objetivo, a si próprio, diz a cultura grega clássica que está sob o influxo da hamartía. Neste enredo, suas próprias forças são muito fracas para o livrar do seu envolvimento, do seu distanciamento de seu próprio eu, desta paralisia que o bloqueia. Pior ainda, “aquele que não enfrenta a própria sombra acaba por projetá-la inconscientemente no outro” [14]. E, quantas vezes projetamos a nossa despreparação para a democracia como um problema da sociedade, do outro.
A reconciliação conosco mesmos é o primeiro passo para superar nossa hamartía. E, para tanto, não podemos partir de nosso próprio enredo (nossa visão de liberdade), é preciso considerar a alteridade, transportarmos para a visão do outro (de outra liberdade esquecida), pois conhecendo o outro em sua ipseidade, em sua diferença, no que não é redutível ao nosso modo de ser, descobrimos estruturas diferentes e colocamos em cheque as nossas, quebramos a certeza que temos de nós mesmos [15].
Significado da Liberdade
O verdadeiro significado de Liberdade é auto-determinação, não mera escolha externa, é, como afirma Paulo Ferreira da Cunha, “assunção individual que implica autoconsciência e possibilidade de luta” [16]. É manifestação da autonomia, não da heteronomia, nem da anomia. Liberdade não é sentimento, mas comportamento: “Quem entende liberdade somente como poder fazer o que se quer, esse está amarrado demasiadas vezes em seus próprios desejos” [17]. Esta concepção equivocada pode nos libertar da escravidão dos outros, mas torna-nos escravos de nós mesmos.
Mais ainda, liberdade não é o mero contorno de possibilidades de atuação que o direito positivo nos faculta. Como atitude, ela não pode ser explicada pelo posto, não pode ser tipificada. O direito meramente estabelece alguns dos limites que extravasam a liberdade e os critérios notadamente impeditivos de sua restrição: “Não é a classificação legal e aditiva de um punhado de liberdades que nos faz mais ou menos livres. É o clima que se respira, é a constituição real e material que se vive. E essa decorre, obviamente, antes de mais, da assunção comunitária do amor da liberdade...” [18].
Romper principal obstáculo externo da liberdade: a manipulação
É preciso romper o ciclo vicioso da manipulação cultural que nos é imposto e falseia o legítimo individualismo. Para isso, atitudes de reflexão:
consultar diversas fontes para confrontar os dados que fundam os argumentos (a reflexão é o pior inimigo da manipulação);
assumir uma “postura crítica” que não se acostuma com as palavras, nem com os gestos;
Lopez Quintás dá-nos dois exemplos muito corriqueiros desta atitude: estendemos a mão para cumprimentar outra pessoa significando que vamos desarmados ao encontro com ela; ao recebermos algum favor dizemos “obrigado” porque colocamo-nos na obrigação de fazer o mesmo por quem nos favoreceu se a situação se repetir inversamente.
conhecer as técnicas jornalísticas e midiáticas (tomar distância e descobrir os truques que meramente buscam o impacto);
Ultrapassando as manchetes, os primeiros parágrafos, ou meramente os destaques do texto, muitas vezes descobrimos, na cotinuidade do texto, que se matizam as afirmações midiáticas iniciais quase sempre planfletárias.
Romper obstáculos pessoais da liberdade
Para que exista a atitude de Liberdade é preciso romper as amarras do pensar pelos padrões alheios que em geral convertem-se em falsos padrões pessoais.
E, infelizmente, estamos cercados de amarras internas do pensar:
da opinião ou expectativas dos outros, do reconhecimento ou do juízo dos outros, do poder do mundo e de seus expectativas, da moda [19];
das próprias necessidades e desejos, que muitas vezes não são próprias, mas fabricadas em nosso consciente pela comunicação de massa, pelo mercado;
do sentimento de que nossa própria biografia nos determina;
de temores e de escrúpulos.
Mais ainda, é para nós desafio presente o Conhece-te a ti mesmo [20]. Precisamos ainda nos libertar da falsa realidade pessoal que nós mesmos construímos:
da escravidão da auto-referência, ou da auto-suficiência, onde penso que eu conduzo minha vida sozinho (escravidão, que a teologia chama do pecado);
da escravidão da falsa auto-afirmação: cumpro as leis, faço tudo o que é certo, sou bom (escravidão das leis). Não é o externo que nos torna melhores, mas a purificação de nosso coração.
da escravidão do auto-engano: gloriar-me dos meus feitos e dos meus valores, da minha inteligência.
Desafios da Liberdade Política
Libertos das amarras, podemos atingir o significado pessoal da liberdade individual e podemos ousar romper com os padrões sociais para exigir o sentido atual da liberdade no campo político-social, da liberdade política.
Podemos ousar instaurar, em paralelo ao sistema existente, uma representação “imperativa” e “revogável”, onde a delegação circunscreva-se a assuntos concretos e que, uma vez resolvidos, se dissolva. Podemos desmitificar a cidadania do mero “direito de voz” e “de voto” para assumir uma cidadania como afirmação e criação de direitos, onde o sujeito possa de fato, pela “atuação” direta, “decidir” as questões públicas e não meramente influenciar ou, quando muito, pressionar a condução das mesmas. Podemos quebrar a longa ponte entre os governantes e os governados, criando o espaço de discussão pública, a Ágora, de atuação direta, pois a mera participação não é sucedâneo da efetiva atuação.
Exercendo a principal qualidade do cidadão grego, a PARRESIA [21]: coragem de dizer na Ágora, a verdade, independente da opinião do outro, e sem ceder ao PHOBOS: paralisia, medo de revelar o que somos. Deixemos de querer que os outros tenham a mesma imagem individualista que falseamos para a nossa convivência e construamos um novo conceito constitucional de democracia.
Noção de Princípio
O conceito de princípio é nada mais do que uma feliz tradução do conceito grego Arkhé, que significa "começo" e "fator essencial que alimenta desde dentro" [22]. Compreendamos Arkhé:
“O
espanto é, enquanto páthos, a arkhé da filosofia. Devemos compreender, em seu
pleno sentido, a palavra grega arkhé Designa aquilo de onde algo surge. Mas
este “de onde” não é deixado para trás no surgir; antes, a arkhé torna-se
aquilo que é expresso pelo verbo arkhein, o que impera. O páthos do espanto
não está simplesmente no começo da filosofia, como, por exemplo, o lavar das
mãos precede a operação do cirurgião. O espanto carrega a filosofia e impera
em seu interior.
Aristóteles diz o mesmo (Metafísica, 1, 2, 982 b 12
ss.): dià gàr tò thaumázein hoi ánthropoi kaì nyn kai prôton ércsanto
philosophein. “Pelo es-panto os homens chegam agora e chegaram antigamente à
origem imperante do filosofar” (àquilo de onde nasce o filosofar e que
constantemente determina sua marcha).
Seria muito superficial e, sobretudo, uma atitude mental pouco grega se quiséssemos pensar que Platão e Aristóteles apenas constatam que o espanto é a causa do filosofar. Se esta fosse a opinião deles, então diriam: um belo dia os homens se espantaram, a saber, sobre o ente e sobre o fato de ele ser e de que ele seja. Impelidos por este espanto, começaram eles a filosofar. Tão logo a filosofia se pôs em marcha, tornou-se o espanto supérfluo como impulso, desaparecendo por isso. Pôde desaparecer já que fora apenas um estímulo. Entretanto: o espanto é arkhé — ele perpassa qualquer passo da filosofia” [23].
Princípio como norma jurídica
Princípios são “exigências de optimização abertas a várias concordâncias, ponderações, compromissos e conflitos” [24], “são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionamentos fáticos e jurídicos”, enquanto as regras são “normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não cumprida”, constituem exigências de aplicação [25].
Enquanto a regra á aplicada e esgota seus efeitos, o princípio é otimizado ou concretizado (aplicado ou densificado da melhor forma possível, segundo as circunstâncias) e nunca exaure seus efeitos, pode sempre ser otimizado novamente. O princípio não está somente na origem, mas também na continuidade.
Princípio constitucional
Os princípios constitucionais são normas de natureza estruturante de toda a ordem jurídica que legitimam o próprio sistema, pois consagram valores culturalmente fundantes da própria sociedade. Assim, o princípio constitucional democrático estrutura juridicamente todo o regime político e o faz legitimamente porque se funda no valor conatural ao homem da liberdade política hoje positivado em diversos matizes.
Princípio Constitucional Democrático
A concepção teórica de Estado de direito cumpre a missão de limitar o poder político para estabelecer o império do direito, o “governo das leis e não dos homens”, o que pode aparentar mero atrelar-se à “liberdade dos modernos” assente no distanciamento e na restrição do poder, na defesa contra o mesmo.
Por sua vez, a concepção teórica de Estado democrático busca um poder, uma ordem de domínio legitimada pelo povo na sua titularidade e no seu exercício, organizada e exercida em uma dinâmica que não se desvincula do povo (na formulação de Lincoln: governo do povo, pelo povo, para o povo), o que pode aparentar mero atrelar-se à “liberdade dos antigos”, amiga da convivência com o poder.
Ocorre, no entanto, que o princípio constitucional democrático renova estas concepções, ao estabelecer para a democracia uma dimensão substancial (legitimidade) e duas procedimentais (legitimação). A legitimidade está atrelada à prossecução concreta e participativa de determinados fins e valores positivados (Estado de direito democrático – renovação sensivelmente diversa da fórmula “para o povo”). A legitimação está vinculada a escolha dos governantes (teoria da democracia representativa) e a formas procedimentais de exercício do poder que permitem atuar em sua concretização e renovar o controle popular (teoria da democracia participativa).
A dimensão positivada pela Constituição da legitimidade demonstra que o atual Estado de direito limita o exercício não democrático do poder, assim como a democracia, em sua dimensão substancial, deslegitima o poder exercido contra os valores positivados pelo direito, contra o direito.
Estas facetas da democracia demonstram que esta constitui princípio jurídico informador, “impulso dirigente” [26] do Estado e da sociedade, fundamento radical e funcional de qualquer organização do poder. Desdobra-se em diversas normas principiológicas: soberania popular, renovação dos titulares de cargos públicos, sufrágio universal, liberdade de propaganda, igualdade de oportunidades nas campanhas eleitorais, separação e interdependências dos órgãos de soberania, entre outros.
Dimensões jurídicas do princípio democrático
O auto-governo, ou auto-determinação necessária para a existência da democracia deve pautar-se pelas TRÊS dimensões anteriormente apontadas.
O crescimento da primeira (legitimidade) é fator marcante das atuais ordens constitucionais positivadas, especialmente no concernente aos direitos fundamentais sociais e à igualdade. Nesta dimensão, consolidam-se as invariantes axiológicas, protegidas pelo princípio constitucional do direito adquirido.
Quanto à escolha dos governantes, influi a renovação das disciplinas partidárias hoje esmaecidas em imagens pretensamente universais, nebulosas e sem conteúdo, bem como o resgatar mecanismos de garantia do princípio da liberdade do voto contra as manipulações eleitoreiras.
Quanto aos procedimentos que permitem atuar na concretização do poder, influem as renovadas formas de integrar a comunidade na gestão, no processo de decisão, que suplantam os ineficazes instrumentos do plebiscito, referendo e iniciativa popular, bem como as novas formas de se exigir o respeito e os direitos das minorias. Nestes novos procedimentos apontaríamos especialmente a necessidade de preferir-se às técnicas do consenso, em substituição às técnicas de imposição majoritária.
Quanto aos procedimentos que renovam o controle popular sobre o exercício do poder, ganha destaque a atual necessidade de combate à corrupção e, em função disso, a necessidade de processos de destituição pacífica de dirigentes que cederam às tentações da tirania (concepção negativa de democracia em Popper).
Para que exista o radical conceito de LIBERDADE, é preciso assumir verdadeiro comportamento de auto-determinação, não de mera escolha de opções externas (manifestação da autonomia, não da heteronomia, nem da anomia). Para que exista, de fato, AUTONOMIA, como capacidade de decidir o próprio fim, a própria regra ou norma de conduta individual e política, precisamos adquirir coragem de romper com as explicações externas do que queremos para nós mesmos, precisamos ultrapassar as barreiras do “Conhece-te a ti mesmo”. Atingida esta etapa podemos exercer a LIBERDADE POLÍTICA, base estrutural da DEMOCRACIA, pois adquiriremos a PARRESIA, a coragem de dizer no espaço público (Ágora), a verdade, independente da opinião do outro. Assim poderemos lutar para a efetividade do PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICO, que exige a realização de VALORES positivados e a verdadeira ATUAÇÃO (não mera participação) na definição consensual das decisões políticas.
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NOTAS
*
Comunicação apresentada no II Colóquio Internacional - Direito Natural,
Justiça e Política, em 8 de novembro de 2005, organizado pelo Instituto
Jurídico Interdisciplinar em conjunto com a Faculdade de Direito da
Universidade do Porto, Portugal.
1 Marilena Chaui. Cultura e Democracia. p. 300.
2 Gregório Marañon. Tiberio: Historia de un resentimiento. p. 229.
3 Gregório Marañon. Tiberio: Historia de un resentimiento. p. 117.
4 Cf. Alfonso Lopez Quintás. La tolerancia y la manipulacíon.
5 Gregório Marañon. Tibério: Historia de un resentimiento. p. 230.
6 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. p. 88.
7 Cf. Benjamin Constant. Sobre la libertad em los antiguos y em los modernos.
8 Benjamim Constant assim relaciona exemplo do que era exercer liberdade política na Grécia: deliberar em praça pública sobre a guerra e a paz, concluir com os extrangeiros tratados de aliança, votar as leis, pronunciar as sentenças, examinar as contas, os atos e as gestões dos magistrados, fazê-los comparecer perante o povo, acusá-los, condená-los ou absolvê-los. (Aut. cit. Sobre la libertad em los antiguos y em los modernos. p. 68)
9 Paulo Ferreira da Cunha. Res Pública: ensaios constitucionais. p. 21.
10 Nossa Constituição Federal de 1988, aponta que uma das três finalidades da educação e preparar para a prática da democracia, vejamos: “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
11 Cf. Paulo Ferreira da Cunha. Res Pública: ensaios constitucionais.
12 Cf. Henrique Cláudio de Lima Vaz. Ética e Direito. p. 343 e ss.
13 Paulo Ferreira da Cunha. Res Pública: ensaios constitucionais. p. 25.
14 Anselm Grün. Perdoa a ti mesmo. p. 41
15 Cf. Antonio Medina Rodrigues. As utopias gregas. p. 65
16 Paulo Ferreira da Cunha. Res Pública: ensaios constitucionais. p. 21.
17 Anselm Grün. Caminhos para a liberdade. p. 28.
18 Paulo Ferreira da Cunha. Res Pública: ensaios constitucionais. p. 21-22.
19 Oscar wilde já nos dizia que sabemos o preço de tudo, mas o valor de nada.
20 Texto inscrito no frontispício do Templo de Apollo (deus da harmonia), juntamente com o seguinte: “Nada em excesso”.
21 Segundo Foucault, em Coraje y Verdad “la parresía es una clase de actividad verbal donde el que habla tiene una relación específica con la verdad a través de la franqueza, una cierta relación con su propia vida a través del peligro, un cierto tipo de relación consigo mismo o con otras personas a través de la crítica (autocrítica o crítica de otras personas), y una específica relación con la ley moral a través de la libertad y el deber. Más precisamente, la parresía es uma actividad verbal en la cual el que habla expresa su relación personal con la verdad y arriesga su vida porque reconoce que decir la verdad es una obligación para mejorar o ayudar a otras personas (tanto como a sí mismo). En la parresía, el que habla usa su libertad y elige la franqueza en vez de la persuasión, la verdad en vez de la falsedad o el silencio, el riesgo de muerte en vez de la vida y la seguridad, la crítica en vez de la lisonja, y la obligación moral em vez del propio interés y la apatía moral”
22 Expressão utilizada por Jean Lauand em conferência ministrada na Escola Superior de Direito Constitucional.
23 Martin Heidegger. Que é isto – A Filosofia.
24 J. J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 1163.
25 J. J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 1161.
26 Cf. J. J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
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