Princípio da Legítima Confiança

 

(artigo originalmente publicado na revista "Ser Advogado", Dezembro 2007)

 

Marcelo Lamy

 

Não deve pairar dúvida ao jurista que um dos fundamentos mais radicais do sistema jurídico moderno é o princípio da segurança jurídica, que se desdobra essencialmente na subserviência à lei e na legítima confiança: “a vinculação do Poder Público à juridicidade importa não apenas a rígida observância das leis, mas também a proteção da segurança jurídica, entendida como a tutela da legítima confiança depositada pelos administrados nas condutas da Administração” (Binenbojm, 2006: 190).

Tal princípio é requisito necessário para que um ordenamento possa qualificar-se como justo: “O ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do outro e não tem mais remédio que protegê-la, porque poder confiar (...) é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e uma conduta de cooperação entre os homens e, portanto, da paz jurídica” (Larenz, 1985: 91). Mais ainda, “a suscitação da confiança é imputável, quando o que a suscita sabia ou tinha que saber que o outro ia confiar” (Larenz, 1985: 96).

Assim sendo, se estivermos diante da boa-fé subjetiva (que afasta o dolo, a coação e a fraude) e objetiva (de uma situação digna de confiança, de um comportamento leal e confiável médio) do administrado e de uma efetiva conduta direcionada em função de um ato administrativo, a confiança legítima não pode ser frustada por uma mudança de posição do Estado.

A mudança de posição do Estado, que surpreenderia a legítima confiança, poder-se-ia se dar em função dos seguintes motivos: a) reconhecimento ou descoberta da inconstitucionalidade do ato; b) reconhecimento ou descoberta da ilegalidade do ato; c) determinação de novas diretrizes políticas. Em todas essas formas, a mudança somente se legitimará pelo juízo concreto de ponderação.

Quanto à inconstitucionalidade, está presente em nosso ordenamento, desde 1999, dois dispositivos que atribuem efeitos jurídicos legítimos aos atos reconhecidos como inconstitucionais em função da segurança jurídica: art. 27 da lei n. 9.868/99 e o art. 11 da lei n. 9.882/99.

Quanto à ilegalidade, está presente em nosso direito, desde a lei 9.784 de 1999, uma série de orientações normativas relativas à manutenção e ao saneamento de determinados atos administrativos mesmo que ilegais (arts. 53 a 55), destacando-se em especial o prazo decadencial de 5 anos.

Jurisprudência marcante, verdadeiro leading case, neste tema é a manifestação do STF no MS 24.268-MG/2004 (rel. para o acórdão, Min. Gilmar Ferreira Mendes), confirmada no MS 22.357-DF/2004 (rel. Min. Gilmar Ferreira Mendes).

A ilegalidade pode ser desconsiderada também frente a caso concreto que demonstre relevância de outro princípio como o da eficiência. Assim já ocorreu na decisão de n. 314/1994 da 1ª Câmara do TCU, que permitiu o prosseguimento de contrato inquinado como ilegal diante da evidência de que as despesas com o distrato, a nova licitação e a nova contratação seria antieconômicas. Convalidou-se, neste caso, integralmente (inclusive ad futurum) ao contrato, por força do juízo de ponderação, onde prevaleceram os princípios da eficiência e da confiança legítima em detrimento da legalidade.

Quanto à nova diretriz política, típica de atos discricionários, sujeitos a conveniência e oportunidade, há que se ressaltar que, em determinados casos, a discricionariedade pode ser reduzida a zero, em benefício exclusivamente de se resguardar princípios incidentes na hipótese.

Assim, a uniformidade de conduta de agente público pode provocar a incidência de princípios constitucionais, como o da igualdade, da segurança jurídica ou mesmo da legítima confiança que exigirão a permanência do que antes havia sido decidido.

Apontamentos desta natureza trazem novos parâmetros para entendermos a tão rotineira matização dos efeitos das decisões judiciais. Em especial a recente manifestação do STF sobre a fidelidade partidária que ancorou a produção de seus efeitos a partir da manifestação do TSE, momento a partir do qual a legítima confiança não poderia mais ser invocada pelos parlamentares infiéis, pois desaparece a possibilidade de invocar a boa-fé objetiva.

 

Referências:

BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. RJ: Renovar, 2006.

LARENZ, Larenz. Derecho Justo - Fundamentos de Ética Jurídica. Madrid: Civitas, 1985.

 

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