Conceitos Indeterminados: limites jurídicos de densificação e controle

 

artigo originalmente publicado na "Revista Internacional d´Humanitats", número 11, Março 2007 - p. 53-58
publicação conjunta: CEMOrOC-USP; Núcleo Humanidades - ESDC; Universidade Autónoma de Barcelona

 

Marcelo Lamy

Instado a manifestar-me, em caso concreto recente – no qual determinada autoridade judicial estava sendo enquadrada no descumprimento de obrigação funcional estabelecida em lei (LC n. 35/1979) e tipificada nos seguintes termos (art. 35, VIII): manter conduta irrepreensível na vida particular –, pus-me a refletir sobre a possibilidade abstrata de se repreender alguém juridicamente (ou seja, de se penalizar) pelo enquadramento de seus atos em qualquer instituto estabelecido em lei de forma aberta e incerta.

Há institutos estabelecidos em lei que se apresentam positivados em sua delimitação completa. Ou seja, apresentam-se definidos (de-finidos: revelam completamente as fronteiras limítrofes do que são e do que não são). Em seus próprios enunciados, delimitam sua exatas extensões e compreensões, de modo unívoco, em dado contexto. Diversos outros, no entanto, explicitam apenas parcialmente esses limites ou extensões. Ou seja, apresentam-se, na forma como foram enunciados, como conceitos.

Todos os conceitos revelam uma zona fixa (um núcleo) e uma zona periférica. No domínio do núcleo conceitual são estabelecidas as certezas; onde se inicia a zona periférica, as dúvidas começam.

A doutrina [1], debruçando-se sobre este problema, identifica-os como indeterminados quando suas zonas periféricas apresentam-se de forma extensa e difusa e as zonas nucleares de forma reduzida (assim ocorre, em nosso sistema, v. g., com notória especialização, notável saber, significativa degradação do meio ambiente, conduta irrepreensível, etc.).

Segundo o estágio atual da teoria dos conceitos jurídicos indeterminados [2], possibilidade de controle jurídico sobre os mesmos existe, mas este se dá apenas junto ao núcleo do conceito, não junto a zona periférica, pois recusar a possibilidade de controle sobre esses seria convertê-los em algo despropositado, seria o mesmo que manifestamente não aplicar a lei que os haja formulado. Admitir, no entanto, o controle absoluto como se estivéssemos perante uma definição também seria desvirtuar os limites do que foi positivado.

Ou seja, diante de qualquer conceito jurídico indeterminado, apesar de sua indeterminação, há sempre uma zona de certeza negativa (o que não é) e positiva (o que é) onde é possível o controle para afastar as interpretações e aplicações incorretas, embora sempre permaneça uma zona de penumbra, de incerteza, que é insindicável.

Nesse sentido, afirma Gustavo Binenbojm:

“quando é possível identificar os fatos que, com certeza, se enquadram no conceito (zona de certeza positiva) e aqueles que, com igual convicção, não se enquadram no enunciado (zona de certeza negativa), o controle jurisdicional é pleno. Entretanto, na zona de penumbra ou incerteza, em que remanesce uma série de situações duvidosas, sobre as quais não há certeza sobre se se ajustam à hipótese abstrata, somente se admite controle jurisdicional parcial [3].

E, mais adiante, esclarece: o controle parcial pode se dar unicamente pelo eventual conflito com as normas principiológicas (o que, a nosso ver, é uma forma de construção da zona de certeza pela técnica da interpretação sistemática, tão propugnada pela hermenêutica; e não hipótese de controle da zona de penumbra).

Pode-se observar a rejeição de uma zona de certeza negativa, na seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça [4]:

“Administrativo. Serventia extrajudicial. Remoção por permuta entre escrivã distrital e titular de ofício de Cartório de Imóveis. Respectivamente filha e pai. Lei de organização e divisão judiciária do Estado do Paraná. Ato condicionado à existência do Interesse da Justiça. Ainda que a expressão “Interesse da Justiça” tenha um sentido bastante abrangente nela não se compreende o nepotismo, a simulação e a imoralidade. 'In casu', o ato de remoção não condiz com o Interesse da Justiça, como exigido na lei de organização judiciária do Estado, nem com o princípio da legalidade, da impessoalidade e da moralidade, mas com os interesses pessoais dos envolvidos. Recurso provido” (destaques nossos).

Observe-se que os princípios constitucionais elencados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade ajudaram a desenhar a linha demarcatória, os limites da zona de certeza. O controle não recaiu sobre a zona de incerteza ao se referir aos princípios.

Por outro lado, a determinação de uma zona de certeza positiva afasta o que a faça contraste. Nesse sentido [5], quando Floriano Peixoto indicou para o Supremo Tribunal Federal o médico Barata Ribeiro e dois generais, Inocêncio Galvão e Raymundo Ewerton de Quadros, o Senado recusou as nomeações, ao aprovar o parecer de João Barbalho que apontava, em síntese, que o requisito do “notável saber” a que se referia a Constituição da época, tinha de ser, para a função específica, notável saber jurídico. Assim sendo, aos indicados, pelas suas outras especialidades, não se poderia presumir o saber jurídico.

Em decisão mais recente, em que estava em jogo a nomeação de conselheiros de Tribunal de Contas estadual, o Supremo Tribunal Federal renovou este entendimento: “Necessidade de um mínimo de pertinência entre as qualidades intelectuais dos nomeados e o ofício a desempenhar. Precedente histórico: parecer de Barbalho e a decisão do Senado” [6].

Vê-se, portanto, que o preenchimento de parte do significado jurídico de um conceito indeterminado é possível, embora sempre permaneça uma zona cinzenta indeterminável.

Suplantada a possibilidade, importa determinar que meios podem ser admitidos para tal preenchimento de significância.

Nosso ordenamento, como todos os modernos, tem como pressuposto que toda e qualquer ação ou decisão de qualquer autoridade pública deve ser fundamentada e que esta motivação deve ser feita utilizando-se do próprio Direito. Em termos gerais podemos dizer que os órgãos públicos somente podem agir e decidir fundados na juridicidade.

Nossa Constituição é enfática, em sua literalidade, sobre a necessidade de fundamentação: o inciso LXI, do artigo 5º, diz que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada; o artigo 93 estabelece que todos as decisões dos órgãos do Poder Judiciário serão fundamentadas (inc. IX) e mais, que todas as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas (inc. X). Ou seja, todo e qualquer ato administrativo e judicial exige fundamentação.

E mais, esta fundamentação deve sempre estar permeada de juridicidade.

Para o Direito positivado estrangeiro, esta forma de se expressar já é comum. Vejamos: o art. 2º, §3º, da Lei Fundamental de Bonn, desde 1949 estabelecia a vinculação do Poder Executivo à lei e ao Direito; o art. 103, I, da Constituição espanhola de 1978, o mesmo; o art. 266, 2, da Constituição de Portugal, à lei e à Constituição.

Coroa este pensamento, autorizada doutrina pátria: “A Administração não está vinculada apenas à lei formal, mas a um bloco mais abrangente de juridicidade que inclui, em seu ápice, a Constituição. A ausência de lei formal não autoriza a Administração a ignorar deveres que decorrem do núcleo de princípios constitucionais” [7] (destaques nossos).

Isto posto, a única resposta possível sobre quais os meios admitidos para o preenchimento de um conceito jurídico indeterminado, é que esse deve se dar com a busca de elementos densificantes que já se encontram dentro do sistema jurídico.

Dizendo de outra forma, o preenchimento do significado que diminui a abrangência daquela zona cinzenta, embora não a elimine, somente será possível nos termos do que já estiver pré-determinado pela análise sistemática, pela interpretação sistemática do próprio Direito positivado.

Condutas repreensíveis na vida particular ou privada poderiam ser apenas aquelas condutas que já estão expressamente reprovadas pelo Direito (únicos limites intrínsecos admissíveis a uma liberdade constitucional como a vida privada, tida por inviolável pelo artigo 5º, inciso X, de nossa Constituição) e que, por si só, apresentem contradição com o seu núcleo conceitual.

Condutas irrepreensíveis na vida particular ou privada poderiam ser apenas aquelas condutas que integrem o próprio núcleo conceitual de vida privada e que estejam descritas pelo direito positivo como uma espécie de “exercício regular do direito”.

O que ultrapassar estas zonas de certeza positiva e negativa, recai sobre aquela referida zona cinzenta que não é passível de significância jurídica e, portanto, insindicável.

O núcleo conceitual de vida privada é descrito com pouca diversidade pelos variados pensadores, mudam, na verdade as abordagens, mas o núcleo objetivo amparado é sempre o mesmo. O que permite identificá-lo, com precisão, como um conjunto de atividades, situações, atitudes ou comportamentos que, não tendo relação com a vida pública (com a coisa pública), dizem respeito estritamente à [8]: (a) liberdade sexual (intercurso sexual e identidade sexual); (b) liberdade da vida familiar (relação entre os cônjuges ou parceiros, procriação, relação entre pais e filhos); (c) morte; (d) liberdade de domicílio.

Serão, portanto, repreensíveis as seguinte condutas privadas:

(1) as relativas à liberdade sexual:

 

(a) quanto ao intercurso sexual, os crimes contra a liberdade sexual, descritos no Código Penal – estupro (art. 213), atentado violento ao pudor (art. 214), posse sexual mediante fraude (art. 215), atentado ao pudor mediante fraude (art. 216), assédio sexual (art. 216-A);

 

(b) quanto à identidade sexual: mudança de sexo não autorizada, mesmo frente ao intersexualismo ou ao transsexualismo;

 

 

(2) as relativas à liberdade da vida familiar:

 

(a) os crimes descritos no Código Penal contra o casamento – bigamia (art. 235), induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (art. 236), contrair casamento com conhecimento prévio de impedimento (art. 237), simulação de autoridade para celebração de casamento (art. 238), simulação de casamento (art. 239);

 

(b) as condutas ilícitas civis relativas ao casamento – como as do art. 1.573 do Código Civil: adultério, tentativa de morte, sevícia ou injúria grave, abandono voluntário do lar conjugal durante um ano contínuo, condenação por crime infamante, conduta desonrosa.

 

(c) crimes contra o estado de filiação, descritos no Código Penal – registro de nascimento inexistente (art. 241), parto suposto ou supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido (art. 242), sonegação de estado de filiação (art. 243);

 

(d) crimes contra a assistência familiar, descritos no Código Penal - abandono material (art. 244), entrega de filho menor a pessoa inidônea (art. 245), abandono intelectual (arts. 246 e 247);

 

(e) crimes contra o patrio poder, tutela e curatela, descritos no Código Penal – induzimento a fuga, entrega arbitrária ou sonegação de incapazes (art. 248), subtração de incapazes (art. 249);

 

(f) prática de aborto não amparado pelo art. 128 do Código Penal ou pela hipótese da anencefalia;

 

(g) descumprimento do dever de alimentos, guarda e de visita, estabelecidos pelo Código Civil e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90);


 

(3) as relativas à morte: eutanásia ativa ou apressar a morte de outrem, tida em nosso sistema como homicídio;

 

(4) as relativas à liberdade de domicílio: descumprimento das regras gerais de convivência e vizinhança ou mesmo da postura municipal.

Serão, por sua vez, irrepreensíveis as seguintes condutas privadas: (a) as relativas à liberdade sexual (quanto ao intercurso sexual: respeito à vontade livre e consciente de praticar relação sexual, quaisquer práticas sexuais consentidas em ambiente privado de natureza hetero ou homossexual; quanto à identidade sexual: mudança de sexo autorizada); (b) as relativas à liberdade da vida familiar (quanto a relação entre os cônjuges: casamento ou união estável; quanto à procriação: prática de aborto legal autorizado; quanto à relação entre pai e filho: cuidado da prole, cumprimento do dever de pensão, guarda e visita); (c) as relativas à morte (eutanásia passiva); (d) as relativas a liberdade de domicílio (cumprimento das regras gerais de convivência e vizinhança e da postura municipal).

O que ultrapasse os limites parciais explicitados pelos enunciados do instituto e pela conjugação de todo o sistema jurídico no que se refira ao núcleo conceitual (ora estabelecidos panoramicamente para o instituto da conduta irrepreensível na vida privada), não terá fundamento jurídico adequado e, portanto, deve permanecer na zona de penumbra, não podendo ser recriminada juridicamente, embora a moral possa estabelecer outros parâmetros. A densificação e o respectivo controle sobre os conceitos jurídicos indeterminados deve ater-se exclusivamente ao que o enunciado e o sistema permitem identificar sem qualquer dúvida como contrário ao núcleo conceitual.


NOTAS

 

1   Cf. José Manuel Sérvulo Correia. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos. Coimbra: Almedina, 1987, p. 120.

2   Cf. Gustavo Binenbojm. Uma teoria do direito Administrativo. RJ: Renovar, 2006.

3   Gustavo Binenbojm. Uma teoria do direito Administrativo. RJ: Renovar, 2006. p. 220.

4   Superior Tribunal de Justiça, RMS nº 1751/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Américo Luz, j. 27.04.1994, DJ 13.06.1994, p. 15.093.

5   Cf. Leda Boechat Rodrigues. História do Supremo Tribunal Federal, 1965, I, p. 46 e 47.

6   Supremo Tribunal Federal, RE nº 167.137-8-TO, 2ª Turma, rel. Min. Paulo Brossard, DJU 25.11.1994.

7   Luis Roberto Barroso. Petição inicial da ADC 12, item 40. Acesso em 5 de fevereiro de 2006, in: http://www.stf.gov.br/Jurisprudencia/Peticao/Frame.asp?classe=ADC&processo=12&remonta=2&primeira=1&ct=25

8   Cf. José Adércio Leite Sampaio. Direito à intimidade e à vida privada. BH: Del Rey, 1998.

 

imprimir

 

Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC
55 (11) 3663-1908 -
esdc@esdc.com.br  -  www.esdc.com.br