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PLUTO (Deus da Riqueza), de ARISTÓFANES - Parte II

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
 mitologia@esdc.com.br

Blog: www.lucienefelix.blogspot.com

Testa Di Vecchia – Antonio Carneo

Prosseguindo na comédia de Aristófanes sobre Pluto, o deus da Riqueza, conheceremos Blepsidemo, o incrédulo amigo do camponês Crêmilo; testemunharemos a expulsão da Pobreza, indignada com a nova ordem das coisas, a aflição de uma velha patética, lamentando o abandono do amante e a ardilosidade de Hermes, buscando “emprego”, agora que o Olimpo faliu.

Ao saber que o deus da Riqueza era realmente cego, Blepsidemo interpreta: “Ora aí está, porque nunca foi a minha casa”. Constatando banimento, chega a Pobreza: “Oh, empresa temerária, sacrílega e ilegal, o que dois homens de nada, os desgraçados, tentam fazer!”

Crêmilo pergunta: “E tu quem és? Pareces-me pálida!”. Blepsidemo diz que talvez seja a Erínia, vinda da tragédia: “Tem um olhar de loucura e de tragédia”.

Com altivez, indaga a Pobreza: “sabes quem eu sou?”. E Crêmilo: “Uma taberneira ou regateira”. Ela prossegue: “Ah, sim? Não procederam vocês de forma mais ameaçadora, ao procurarem expulsar-me de toda a terra? (...) A Pobreza é que eu sou, a pobreza que vive convosco, há muitos anos”.

Em pânico, Blepsidemo avisa que irá fugir: “É a Pobreza, oh velhaco, o animal mais daninho que jamais existiu (...). Qual é a couraça, qual é o escudo que esta enorme patifa não faz pôr... no prego?” Crêmilo tenta contê-lo: “Coragem, porque o nosso deus sozinho, é bom que o saibas, é capaz de erguer um troféu de vitória contra as manhas desta fulana”.

A Pobreza protesta: “E vós ainda ousais, parelha de imbecis, grunhir, apesar de apanhados em flagrante fazendo coisas monstruosas? (...) estais convencidos de que não me prejudicais nada, ao tentar fazer com que Pluto recupere a vista?”

Mas o camponês está convencido de que fez o bem, expulsando-a da Grécia.

Pobreza argumenta que isso é o maior mal que se pode fazer aos homens e, imbuída de dar-lhes suas razões diz: “E se vos provar que só eu sou a causa de todos os bens que gozais e que é, graças a mim, que vós viveis...”.

Crêmilo alega que se Pluto não vaguear como cego “dirigir-se-á àqueles homens que são bons e não os abandonará. E fugirá dos maus e ateus. E depois fará que todos sejam bons e ricos – naturalmente – e respeitadores da divindade. E quem jamais poderá descobrir alguma coisa melhor do que isso, para os homens?”

Ela diz que isso não seria útil “Se Pluto voltasse a ver de novo e se repartisse por igual, ninguém mais dentre os homens se preocuparia com a arte ou com a sabedoria. E tendo vós feito desaparecer estas duas, quem quererá trabalhar os metais, construir navios, coser tecidos, fazer rodas, cortar o couro, moldar tijolos, lavar, fazer correias ou ‘com o arado rasgando da terra a superfície, colher o fruto de Deméter’, se vos for possível viver na ociosidade sem vos preocupardes com isso?”

Os criados que agüentem, diz Crêmilo. Pobreza quer saber onde Crêmilo os arranjará e ele diz que comprando. Ela quer saber quem é que os venderá se também tem dinheiro: “Alguém que queira ganhar, um comerciante que chegue da Tessália, onde há insaciáveis ladrões de escravos”.

Pobreza esclarece que não haverá traficantes de escravos, que sendo rico, ninguém arriscará a própria vida nisso e que, desse modo, ele mesmo será obrigado a lavrar o campo, cavar e colher: “(...) em tudo o mais e levarás uma vida muito mais dolorosa do que a atual”.

Não haverá quem faça camas, tapetes, perfumes, mantos: “de que vale ser rico, estando privado de tudo isso? Comigo, todavia, está à vossa disposição tudo aquilo de que precisais, porque eu fico aqui, como uma patroa que força o trabalhador manual, por meio da necessidade e da pobreza, a procurar meios de vida”.

Crêmilo começa a descrever os infortúnios da pobreza: falta de higiene, piolhos, fome, andrajos em vez de um manto, esteira de junco, ao invés de uma cama, pedra, no lugar de travesseiros e inquire: “Não estou eu mostrando que tu és a causa de muitos bens para todos os homens?”

Injuriada, Pobreza contesta, pois isso não é sua vida, mas a dos mendigos, que nada têm. E Crêmilo: “Então não é verdade que se diz que a pobreza é irmã da mendicidade?”

Ela diz que sua vida não passa por tais carências e que nem há de passar: “Mas a vida do pobre é a de quem poupa e se aplica ao trabalho, a quem nada sobra, decerto que não, mas também nada falta”. Crêmilo provoca: “Que feliz, ó Deméter, essa vida do pobre de quem tu falas, se depois de poupar e de penar não deixará com que ser enterrado”.

Convicta de seus predicados até no aspecto físico das pessoas, assinala que os ricos são gordos: “Ao passo que os meus são magros, de cintura de vespa, e incômodos aos inimigos”. Irônico, Crêmilo retruca: “É talvez com a fome, que tu lhes arranja a cintura de vespa”.

Pobreza diz então que a moderação (sophrosyne é o que há de mais caro aos gregos) mora com ela e que Pluto é a própria insolência. Crêmilo cita os ladrões e conclui que furtar e arrombar as casas é o cúmulo da moderação.

Imbuída de provar o quanto a riqueza corrompe, Pobreza diz que basta observar os políticos, que enquanto pobres, são justos com o povo, mas que basta enriquecerem com o dinheiro público para, imediatamente, se tornarem injustos e conspirarem contra a plebe.

Crêmilo reconhece que nisso, a Pobreza tem toda razão, mas roga que não tente se enfeitar, persuadindo-os que é melhor que a riqueza. Senão, diz ele, “como é que todos fogem de ti?”.

Pobreza exclama que os faz melhores. “Pode ver-se muito bem o que acontece com as crianças. Fogem dos pais, porque estes só querem o bem delas. De tal modo, conhecer o que é justo é coisa difícil”.

Irredutível, Crêmilo expulsa Pobreza, que se vai, com a ameaça de que ele ainda haverá de chamá-la. Aliviado, Blepsidemo diz: “Sim, por Zeus, eu quero enriquecer e viver regaladamente com filhos e mulher e, depois de tomar banho, sair reluzente do balneário, a dar peidos para os artesãos e para a Pobreza”.

Eis que entra um denunciante (Sicofanta) com uma testemunha: “Infeliz de mim, como estou perdido, desgraçado que sou! (...) estou submerso num destino cheio de infelicidades”.

Confessa ter perdido tudo o que tinha por causa desse deus que há de voltar a ser cego, se a justiça não o abandonar. Crêmilo inquiri: “Por ventura, era tu dos patifes e dos arrombadores?”.

O denunciante protesta a insolência. Um Justo pergunta se é lavrador e ele diz que não é assim tão maluco. Negociante, então? “Sim, finjo sê-lo, quando convém”. O Justo prossegue: “Se não aprendeste um ofício, como ganhavas a vida ou donde, se nada fazias?”

Diz-se, então, curador dos negócios da cidade e de todos os negócios particulares. O Justo fica indignado. E o denunciante: “Não me diz respeito prestar serviços à minha cidade, pateta, na medida das minhas forças?”.

Sagaz, prossegue: “Sim senhor, é socorrer as leis existentes e não deixar passar, se alguém prevarica”. E o Justo: “Então a cidade não estabelece expressamente que os juízes superintendam nessa matéria?”.

Presunçoso o denunciante pergunta: “E quem é o acusador?”, ao que o Justo responde: “Quem quiser”. O patife afirma que esse tal é ele, por tal forma que nele vêm a dar os negócios da cidade. Carião diz que o denunciante, que agora foge, não merece o que come.

Entra uma velha que, desolada, pergunta a Crêmilo se chegara à casa de Pluto: “Acabo de sofrer ofensas terríveis e contra a lei, meu querido. Desde que esse deus começou a ver, ele fez com que minha vida não se pudesse viver”.

Crêmilo fica curioso e a coroa então prossegue: “Ora ouve! Eu tinha um mocinho por amigo, pobrezinho, mas bem apessoado e belo e bom. Se eu precisava de alguma coisa, ele tudo fazia ao meu serviço com delicadeza e graça. E eu, pela minha parte, servia-o em todos os seus desejos”.

Salienta que o rapaz não pedia muito porque tinha nela um acanhamento excepcional. Crêmilo a assegura que: “É de fato um homem com um amor muito excepcional”.

Ela diz que agora rico, o desavergonhado foge de suas investidas, dizendo que “outrora eram poderosos os milésios”. Crêmilo não se contém: “(...) já não se contenta com sopa de lentilhas. Dantes, levado pela pobreza, comia de tudo”.

Inconformada, a velha diz que antes, o rapaz vinha todos os dias à sua porta: “E dizia que eu tinha as mãos lindíssimas...” (...) “Principalmente, quando exibiam as vinte dracmas”, satiriza Crêmilo. Ingênua, prossegue nostálgica: “E afirmava que a minha pele cheirava bem... (...) que meu olhar era terno e belo...!”.

Crêmilo conclui que não era bronco o sujeito, “sabia comer os recursos de uma velha no cio”. Ela insiste que é injusto que não receba recompensa nenhuma. Ele pergunta se por acaso o rapaz não retribuía a cada noite. Ela diz que sim, mas que havia prometido jamais abandoná-la enquanto fosse viva. Sarcástico, Crêmilo ironiza: “E agora crê que tu já não vives”.

Eis que, passa o rapazinho e a cumprimenta cerimoniosamente: “As minhas saudações! (...) vetusta amiga (...)”. Isso a mortifica: “Infeliz de mim, pela insolência com que sou tratada”. Crêmilo diz parecer que há muito tempo não a vê. “Qual muito tempo, ó infeliz! Ele esteve em minha casa, ontem!”.

O jovenzinho aproveita para troçar perguntando se a velha quer brincar um pouco. Quando ela se anima e pergunta de que brincadeira, ele diz: “Quantos dentes tens”. Crêmilo arrisca: “Mas sabê-lo-ei, também eu. Tem talvez uns três ou quatro”. E o jovem: “Paga! Só é portadora de um molar”. Empolgados, fazem pilhérias aviltantes.

Chega Hermes dizendo que Zeus está furioso porque ninguém sacrifica coisa alguma aos deuses. Carião rememora que no passado, os deuses mal se preocupavam com o povo. Aflito, Hermes confessa: “Mas com os outros deuses pouco me ralo, eu é que estou perdido e destruído (...).

Outrora mensageiro dos deuses, Hermes implora: “Não guardes ressentimento, agora que estais por cima. Mas recebei-me como companheiro de casa, pelos deuses”. Carião se espanta: “O quê? Achas correta a tua deserção?” Ao que ele responde: “Pátria é toda a terra onde alguém é feliz”.

Hermes enumera seus talentos e Carião o deixa entrar: “Como é bom ter muitas invocações! Não é sem razão que todos os juízes se apressam a fazer-se inscrever em muitas letras”.

A peça finda com a chegada do Sacerdote de Zeus, dizendo estar morto de fome, pois as pessoas só entram no templo para fazer as necessidades: “Portanto, também eu creio que vou mandar passear Zeus Salvador e ficar aqui mesmo”.

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