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Os sete pecados capitais

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
 mitologia@esdc.com.br

Blog: www.lucienefelix.blogspot.com

The Seven Deadly Sins - Obra do espanhol Hieronymus Bosch (1450-1516)

O que são esses "pecados", por que "capitais", qual é sua hierarquia, o nome de seus demônios e o mais relevante: como vencê-los?

Combater o mal – nossos erros, nossos vícios, a hýbris (desmedida) grega – é tarefa que não tem fim. É decisão moral que exige a constância digna de um Sísifo, que no mito, dia após dia, por toda eternidade, arduamente empurra uma grande pedra morro acima e, assim que atinge o cume, a maldita volta a rolar abaixo.

E se o tinhoso não se revela devidamente paramentado (nem mesmo na alta Idade Média confirmou-se a presença material, física, concreta, enfim, real do demônio), tal qual nos legou a fantástica imaginação de Dante Alighieri (1265-1321) em sua obra “A Divina Comédia”, lidamos com um símbolo do mal que, embora não possa ser apreendido em conceitos puros, deixa funestos rastros a perpassar toda realidade que nos circunda.

Uma vez que o mal não se apresenta à luz senão como ameaçadora sombra a obscurecer a psyche (alma) humana, arrebatando-nos às profundezas do desespero, perscrutemos suas maiores pegadas a fim de compreender seu modus operandi e refletir sobre qual o reto convívio. Quando tentados, precisamos lidar com o que tenta limitar nossa liberdade, se apossando de nossa vontade.

O filósofo medieval Tomás de Aquino (Aquino é o nome do castelo onde nasceu, no reino de Nápoles) viveu entre 1224/5 a 1274 d.C. Observador atento e sagaz, retomou os estudos de alguns mestres (Atanásio, Antão, Cassiano e Gregório Magno – que em 590 d.C. reexamina a lista de 375 a.C., legada pelo célebre monge Evágrio Pôntico), antigos sábios que antes dele também se aventuraram a fazer – como nos diz o especialista Jean Lauand – uma “tomografia da alma humana” a fim de descrever a ação fenomenológica dos “maus daimons” em nós.

Esses antigos estudos sobre os maus demônios (demonologia) não se limitaram a aspectos dogmático-religiosos; são construções éticas que tiveram impacto na história, na sociedade e na psicologia. Acalentam um propósito bem claro: “para conhecer o mal é necessário voltar-se para os modos concretos em que ele ocorre”, afirmou o empirista Tomás, citando o sábio (pseudo-) Dionísio.

Assim, voltando-se para a realidade mundana, para o dia a dia das pessoas, ele compilou os principais maus hábitos que exercem uma influência espiritual invisível e, se desatentamente permitidos e inadvertidamente cultivados, culminarão naqueles que até hoje conhecemos como sendo os principais erros, os vícios de caput: Os Sete Pecados Capitais.

O vício, alerta Lauand “compromete muitos aspectos da conduta; é uma restrição à autêntica liberdade e um condicionamento para agir mal”. De outro modo, o psicanalista C. G. Jung diz: “Na raiz de um complexo encontra-se um conteúdo com ênfase no sentimento, e cuja menção desperta em nós emoções violentas, mas que nós reprimimos da nossa consciência. Um complexo leva-nos a ‘um estado de falta de liberdade, a pensarmos e a agirmos compulsivamente’”. É quando essas inconscientes partes da psyche sob tensão alcançam o domínio do eu (ego), que, não somente temos o demônio, mas mais ainda: é o demônio quem nos tem.

O que são esses “pecados”, por que “capitais”, qual é sua hierarquia, o nome de seus demônios e o mais relevante: qual é o antídoto (virtude) para vencê-los?

A esses sete grandes modos de desassossego, o medievo denominou “vícios” ou “pecados”; o grego antigo apontaria como sendo “erro” (hýbris, a desmedida), hoje compreendemos tratar-se de condutas que comprometem o bem-estar físico e psíquico, tanto nosso quanto daqueles que nos cercam.

De acordo com a tríplice divisão da alma em Platão (vide artigo já postado nesse blog), os estudiosos estratificaram as principais paixões às quais o ser humano sucumbe:

a) o epitimético diz respeito aos instintos mais primitivos, as necessidades mais básicas, daí suas fraquezas serem a gula, a luxúria e a avareza (ganância);

b) a parte ligada ao thymós, ao coração é emocional, desencadeia estados negativos de ânimo e são ainda mais difíceis de serem superados: a preguiça (acídia) e a ira e,

c) o nôus refere-se ao espírito e corresponde aos vícios da inveja e da vaidade (soberba).

Demoníacos vícios que lideram – máximo-capitais – porque encabeçam e desencadeiam muitos outros formando um verdadeiro exército atrás de si (geram cerca de cinqüenta filhas). Entre esses sete “poderosos chefões” também identificaram um capo de tutti i capi e, curiosamente um agente duplo infiltrado: a Ira!

 


IRA


 

 

A Ira é vício mortal. Cega o homem (o furioso não pode ver a luz), é o mais violento e, apesar de ser o que mais permite entrever uma imagem de sua essência (Amon, é o demônio deixa o irado desfigurado), paradoxalmente, também se apresenta pela virtude. Segundo o Antigo Testamento, o próprio Deus, erguendo-se pela Justiça, irou-se, ao menos três vezes, vide Adão e Eva, o Dilúvio e Sodoma e Gomorra.

A Ira também acomete àqueles que indomitamente se recusam à tibieza e zelam pela Justiça: “É necessário o máximo cuidado para que a ira, que deve ser instrumento da virtude, não domine a mente, mas que, como serva pronta a obedecer, não deixe de seguir a razão, pois quanto mais sujeita à razão, tanto mais veementemente se ergue contra os vícios”, como diz Gregório. Aplacar a ira requer paciência.

 


GULA


 

 

Morada da alma: “Orandum est ut sit mens sana in corpore sano” (Reze para que a mente seja sã dentro de um corpo são), como rogou o poeta satírico romano, Giovenale, o corpo requer boa alimentação, higiene e exercícios físicos regulares.

Todo vício é um excesso e o de comida embota a mente, pois o estômago, quando não é reprimido enfraquece a alma, tornando-nos menos humanos e mais animais. Belzebu é um demônio que inverte assentadas hierarquias: ao invés de comer para viver, vive-se para comer.

As filhas do pecado da Gula são: imundice, embotamento da inteligência, alegria néscia, loquacidade desvairada, expansividade debochada: “vício capital é aquele do qual – a título de causa final – se originam outros vícios, enquanto o objeto do vício capital é desejável intensa e imediatamente” ensina Jean Lauand, ao apontar que uma das condições de felicidade é o prazer e nada nos dá mais prazer que comer e beber. Aplacar a gula requer temperança.

 


ACÍDIA / PREGUIÇA


 

 

Quanto à Preguiça, esqueçam o estereótipo do desocupado prostrado numa rede. Ao nos debruçarmos sobre a Acídia medieval (a acídia ocupava o lugar de nossa Preguiça) compreendemos que a “rede” na qual o demônio Belfegor nos enlaça, é outra.

Na Acídia/Preguiça, o espírito inquieto e perdido se derrama no vasto e variado, o que torna a pessoa apática, letárgica, totalmente sem foco. E justamente por desenraizar o espírito essa preguiça entedia e impede o indivíduo de descansar, de relaxar genuinamente – como um fracassado náufrago que navega à deriva – passam-se as horas, os dias, os anos e, sem nada que o entusiasme a aportar, sobrevém a depressão.

Em sua obra “Sobre o Ensino (De Magistro) – Os Sete Pecados Capitais” (Ed. Martins Fontes), o professor Jean Lauand acrescenta uma análise do Filósofo alemão Joseph Pieper no texto “Concupiscência dos olhos” que elucida muito a inquietação promovida pela acídia/preguiça, cuja primogênita é a tristeza, e a segunda é o desespero.

Ao discorrer sobre a Acídia e curiositas Pieper diz: “Há um desejo de ver que perverte o sentido original da visão e leva o próprio homem à desordem. O fim do sentido da vista é a percepção da realidade. A ‘concupiscência dos olhos’, porém, não quer perceber a realidade, mas ver. (...) A preocupação deste ver não é a de apreender e, fazendo-o, penetrar na verdade, mas a de se abandonar ao mundo, como diz Heidegger em seu Ser e Tempo. Tomás liga a curiositas à evagatio mentis, ‘dissipação do espírito’ (...)”. Isso nos lembra a “nova rede” à qual nos abandonamos, muitas vezes sem rumo, propósito ou moderação: internet!

Jean Lauand aponta que a acídia/preguiça seqüestra o homem de si mesmo e lhe subtrai “aquele bem que só a magnânima serenidade de um coração preparado para o sacrifício, portanto senhor de si, pode alcançar: a plenitude da existência, uma vida inteiramente vivida. E porque não há realmente vida na fonte profunda de sua essência, vai mendigando, como outra vez nos diz Heidegger, na ‘curiosidade que nada deixa inexplorado’, a garantia de uma fictícia ‘vida intensamente vivida’. Aplacar a acídia/preguiça requer diligência.

 


LUXÚRIA


 

 

A Luxúria é o mais sedutor dos vícios, pois seus prazeres são os oriundos do sexo, mas quando em desmedida e intensamente despudorado. A Luxúria é mais problemática quando a capacidade de controlar os instintos é ameaçada pela lembrança de indeléveis experiências ocorridas durante a infância: “Por isso, integrar os instintos é ao mesmo tempo construir também o inconsciente pessoal, o domínio da própria vida”, afirma o teólogo Anselm Grün, em sua obra “Convivendo com o mal – A luta contra os demônios no monaquismo antigo”.

O demônio da Luxúria (Asmodeus) ama a pornografia e nos força a desejar outros corpos: “Ele ataca cruelmente (...) enlameia a alma e a seduz a ações vergonhosas (...). O demônio da luxúria trabalha, sobretudo através da fantasia, que ele enche de imagens e de pensamentos impuros, desta maneira obscurecendo a razão”.

Como Freud já apontou, alguma renúncia ao instinto é necessária à civilização. É típico que esse vício atue de modo repentino, preferencialmente, à noite, libertando e incendiando os instintos até a mais completa animalidade.

Se os arroubos compulsivos de Asmodeus forem mesmo incontroláveis, que os adultos busquem tratamento especializado ou, no mínimo, pessoas e locais apropriados, pois nossos pequenos inocentes são curiosos, bisbilhoteiros e “um segredo pode influenciar o destino das crianças sobre as quais ele pesa”, alerta o psicanalista francês Phillipe Grimbert, autor de “Um segredo em família”. Aplacar a luxúria requer castidade.

 


AVAREZA / GANÂNCIA


 

 

O que move o mundo é a ação. Obviamente, uma vez que a grande maioria das ações empreendidas por nós, em nossa sociedade, visa à obtenção e acúmulo de capital, têm-se a impressão de que o dinheiro é o que move o mundo. Instrumento de coação, controle e de grandes injustiças, não são poucos os malefícios do apego exagerado à matéria.

A Avareza (ganância) também tem sua compreensão deveras limitada pelo estereótipo do velhinho que amealha e esconde seu rico dinheirinho embaixo do colchão. O vício da avareza abarca e encampa os sonegadores, os agiotas, os especuladores, os corruptos, os traidores, os assassinos e os ladrões.

Temeroso, pois em suas alucinações sempre fantasia falência e miséria, escravo de suas posses – o avarento sequer as desfruta – não as possui, é possuído por elas. Não que o dinheiro em si seja sujo ou ruim, mas o amor excessivo ao dinheiro é raiz de muito mal. A ganância é freqüentemente associada a uma mulher que, dizem apela para a dissimulação: aparentando virtude, oculta seu arrivismo, fingindo apenas estar preocupada com o bem-estar, a educação, enfim, o futuro dos filhos.

Os que lidam com Direito Civil certamente estão familiarizados com toda essa mal camuflada modéstia. Vale esclarecer que a ardilosidade não é exclusividade feminina – os homens também se valem desse expediente (além da convincente preocupação com a velhice) como pretexto para justificar submissão à prata. Chegada à idade avançada, tendo propositalmente optado por uma vida franciscana, checar o patrimônio amealhado pelo avaro revela a farsa.

Dante retratará a condição dos gananciosos, avarentos, acumuladores e os esbanjadores. No Purgatório, à espera do perdão, lá permanecem de bruços, com o rosto colado à terra e, sem poder voltar os olhos para o céu, repetem incessantemente o Salmo 119: “Minha Alma está apegada ao pó”.

Em aramaico, o nome do demônio da ganância é Mammon, mas em 1776 o filósofo escocês Adam Smith, ao publicar “A Riqueza das Nações”, obra basilar da Economia Moderna, revolucionou o modo como as pessoas passaram a ver o dinheiro e, conseqüentemente, a ganância. Essa obra é a primeira a enumerar os ‘Princípios da Economia’ e os casos em que o capitalismo, o desejo de possuir cada vez mais podem ser ‘bons’, concebendo um mundo onde a economia seria guiada por uma ‘mão invisível’.

A “Mão invisível” é o que impulsiona a pujança do comércio e das transações: “Nós trocamos algo que valorizamos menos para obter coisas que valorizamos mais”. Como um invencível ‘Leviatã’, na “Mão invisível”, milhões de pessoas ‘funcionam’ de forma egoísta, constantemente desejando coisas que querem através do mercado.

É o renomado economista brasileiro Alexandre Schwartsman quem nos esclarece melhor: "O ponto central de Smith n'A Riqueza das Nações é precisamente que 'não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que ele tem pelos seus próprios interesses', ou seja, que a busca do autointeresse é que provê a sociedade dos bens que ela precisa. É como se houvesse uma "mão invisível" (economistas também podem ser poetas) que guiasse cada um de forma que, na busca do autointeresse, produziríamos o melhor resultado social". Por isso, para a "Lei da Casa" (OIKÓS/NÓMOS = Economia), certa ganância é inerente e propícia ao desenvolvimento, devendo até ser cultivada em nome do bem-estar social. A fim de revelar alguns desses autointeresses, prossigamos nos vícios principais.

A questão não é ser ou não ambicioso, mas quão ambicioso se pode e deve ser. A perversão se dá quando posses e status definem quem você é – espantosamente até para si mesmo! A ganância escraviza a alma, arruína um país, destrói a pólis. O brilhante economista John M. Keynes (1883-1946), em sua obra “Possibilidades econômicas para nossos netos” (1930), alerta que “O amor ao dinheiro como uma possessão – distinto do amor ao dinheiro como um meio para atingir os prazeres e as necessidades da vida – será reconhecido pelo que ele é: uma morbidez um tanto repugnante, uma dessas propensões semicriminosas, semipatológicas que se encaminham com horror aos especialistas em doença mental”.

E Schwartsman, ao citar Adam Smith em "A Teoria dos Sentimentos Morais" nos reconforta, pois o escocês atesta que "Independente de quão egoísta possa ser o homem, há evidentemente um princípio natural que o faz interessar-se pela sorte dos outros e considerar sua felicidade necessária para si, mesmo que nada obtenha dela além do prazer de vê-la". Não é de surpreender que placar a avareza requeira caridade.

 


INVEJA


 

 

A desprezível deusa romana da Inveja (invidia), por onde passa seca flores e plantações, envenenando tudo o que é bom. Inconfessável, a inveja é um vício constrangedor: atormentadora, começa por invadir todos os pensamentos e, na seqüência, domina as atitudes da pessoa. Foi o primeiro pecado cometido pelo demônio e também o que motivou o primeiro assassinato.

Até mesmo na literatura infantil, a inveja é o centro das tramas: branca de neve tem sua morte encomendada porque é bela. E Cinderela é invejada desde antes do grande baile, pois é boa e feliz, mesmo no borralho. No Purgatório de Dante, os invejosos são condenados a vagar tendo os olhos costurados com arame. Isso porque a inveja é um pecado cometido pelos olhos. Em nossa língua, não encontramos uma palavra para definir o que seja sentir alegria no sofrimento ou má sorte do outro, mas em alemão há: “schadenfreude”. Já vivenciar a alegria do outro como se fosse minha (o antônimo da inveja), nos ensina Jean Lauand, em grego antigo, é “synkhairía”.

Na Hélade, precisamente em Atenas, periodicamente os cidadãos eram chamados a, secretamente, escrever o nome de uma pessoa que gostariam que fosse expulsa da cidade num caco de cerâmica chamado “ostrakon”. Se determinado indivíduo tivesse seu nome registrado muitas vezes, ele era simplesmente expulso da cidade. O período de ostracismo durava cerca de dez anos. Para quem se recusasse a pena era a morte.

Certa vez, um nobilíssimo e muito distinto cidadão ao flagrar seu nome sendo escrito indagou: “O que ele fez para que escrevas seu nome”? – o outro cidadão respondeu: “Nada. É que não suporto mais ouvir falarem tão bem dele”.

O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), em seu “Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens” a aponta como inerente – até mesmo seu famoso “bom selvagem” invejaria àquele que, dançando melhor, atraísse mais olhares de admiração. Para que estejamos na mira da inveja não é necessário que sejamos belos, afortunados ou brilhantes – a felicidade – talvez mais até que outros atributos chama mesmo a atenção. E, ponderando sobre o que diz Aristóteles: "ceramista inveja ceramista", geralmente, os subalternos revelam-se amigos sinceros e confiáveis.

No judaísmo, a inveja não é assim um erro tão fatal: a dos eruditos aumenta a sabedoria e alguns estudos mais recentes a tem apontado como sendo mola propulsora do avanço da humanidade. Inveja: “sem ela não haveria progresso; com ela parece não haver paz”.

O “mau-olhado” é o olhar de ódio. Um espelho a aguardar o invejoso remete o olhar negativo de volta. Trazer como amuleto o ‘olho grego’, o petrificante olhar das Gárgulas ou da Medusa, cumpre essa mesma finalidade: proteger-nos dos invejosos.

Uma das filhas mais famosas da inveja é a fofoca (sussurratio). Ela calunia, difama, fomenta intrigas, promove discórdia e desarmonia. Tem um poder de devastação tão grande que consegue fazer romper de modo irreversível, delicados e belos laços afetivos até mesmo entre consangüíneos. Mais uma vez, eis o demônio, plenamente satisfeito e realizado. Aplacar a inveja requer generosidade.

Curiosamente, não são poucas as pessoas que buscam ser alvo de inveja. Daí, adentramos ao mais terrível dos pecados capitais...

 


VAIDADE / SOBERBA


 

 

Quase inexistentes na Idade Média, na atual Idade Mídia, os veículos de comunicação, cônscios do poder em alimentar essa necessidade mundana de – ser mais e melhor, – incutem na mente das pessoas um desejo desesperado por “aparecer” e permanecer em evidência. Diferente da inveja, que envergonhadamente se oculta, a Vaidade (soberba) tem furor pelos holofotes. Não por acaso, seu demônio é Lúcifer – que quando bom daimon, antes da queda, era o portador de LUZ.

É necessário esclarecer, porém, que bem próxima à vaidade (quase se confundindo com ela), há ainda um erro que Tomás apontou como sendo um pecado “supracapital”. É o empenho feroz que, destituído de virtude (literalmente desvirtuado) busca alcançar a excelência, ser “o melhor” naquilo que se propõe.

A Soberba é um erro tão descomunal que atua como uma espécie de guarda-chuva, abarcando sob si todos os demais pecados capitais. A soberba é bem parecida, mas muito, muito superior à mundana e prosaica vaidade (inanis gloria – vangloria), tanto que hoje, nos diz Jean, a Igreja prefere colocá-la no lugar da vaidade.

Orgulho tolo, a vaidade é confronto da criatura efêmera com seu semelhante. É a prosaica aflição pequeno-burguesa do bípede implume que, alardeando seus dons “extraordinários”, ostenta sucessos e brada conquistas. É o desejo ingenuamente mundano de divulgar ao máximo, premeditados (mas indubitavelmente sinceros) sorrisos junto à torre Eiffel (Aspen ou Veneza também servem – e, atire o primeiro tridente quem nunca se flagrou vaidoso), de pavonear o decorador contratado ou a exibição da retesada fisionomia nas publicações de massa que povoam os redutos de Afrodite (salões de beleza). Na contemporânea Idade Mídia, Lúcifer tornou-se patético e, notoriamente, quanto mais provincianamente deslumbrado, mais divertido.

Já a soberba é quando o ser humano confronta-se e disputa a primazia com o próprio Criador, o ‘movente imóvel’ aristotélico, o que está além e acima orquestrando o cosmos (a ordem); seja qual for o nome que lhe dermos, o fato é que esse mega (palavra grega que significa grande) demônio não reconhece autoridade além de si. Superior a todos, eis o capo de tutti i capi: Satã.

Na vaidade, quero ser melhor, mais amado, mais bonito, inteligente, rico ou bem-sucedido que o vizinho, o colega e até mesmo (desde o berço) meu irmão; na soberba a distorção do espírito é tão medonha que não me contento em brilhar entre os pares – para além do bem e do mal – vanitas descomunal, a rivalidade é suprema: julgo-me no direito e exijo ocupar o topós (lugar) do Demiurgo. Satanás quer ser Deus. Como não poderia deixar de convir, aplacar a soberba requer humildade.

 


CONCLUSÃO


 

Vencer o mal não consiste em, como no ascetismo (celibato, por exemplo), tolher a “vontade” ou não se permitir ser acometido por “desejos” – impedir isso não seria nada razoável (vide infindáveis escândalos de pedofilia envolvendo padres da Igreja católica): vontades, desejos e paixões, além de tornar-nos humanos são necessários à felicidade, à evolução e à perpetuação da espécie – mas é sim, priorizando a razão ACIMA dos desejos, que somos livres para decidir com lucidez quando convém ou não (além de como e o quanto) satisfazê-los.

Platão afirma que toda ética é estética e política – ser Bom, Belo e Justo – é decidir livremente com a razão. Valer-se da liberdade para ser razoável remete-nos ao famoso “imperativo categórico kantiano”, sem dúvida. Mas buscar liberdade para agir com os instintos seria, convenhamos, um tremendo contra senso.

Sim, os “maus daimons” nos tentam o tempo todo, mas é a nós, somente a nós que cabe decidir e escolher "o" agir: de livres ou escravos – homens ou animais.

E é considerando (con siderio = pôr junto às estrelas) o “Outro”, nosso semelhante (em Filosofia denominamos “Alter”), que somos éticos, virtuosos.

Como sempre, tudo é questão de bom-senso, justa medida, equilíbrio, moderação, a famosa “Sophrosyne” grega no frontispício do Oráculo do deus da harmonia e da saúde, Apolo, na cidade de Delfos: “Nada em Excesso”.

 





Hieronymus Bosch - Os sete pecados capitais
(1480 – Museo del Prado, Madrid)

Não se sabe ao certo qual a origem desta obra. Talvez provenha da encomenda de uma ordem monástica da época. Sabe-se apenas que posteriormente passou a compor a coleção rei espanhol Felipe II, juntamente com outras obras do artista.

Bosch escolhia para seus temas moralistas personagens de lendas, provérbios e superstições populares, dando-lhes um aspecto alegórico na representação – como também vemos em “A Morte do Avarento”. Com isso ele criou uma iconografia fantástica própria, que lhe permitiu abordar desde os pecados humanos até sua terrível conseqüência, o inferno. Bosch demonstrou sua preocupação com o homem, mostrou de forma contundente e sem rodeios sua percepção apocalíptica da condição humana.

Na obra Sete Pecados Capitais, Jesus Cristo se encontra no centro do painel, cercado por um largo anel dourado no qual está inscrito em latim: "Cuidado, cuidado, Deus vê". A esfera central tem a aparência de um olho humano, e Cristo estaria dentro da pupila. A imagem remete ao significado do olho de Deus, que tudo vê. No restante, temos a representação de cada um dos sete pecados capitais (avareza, soberba, gula, ira, inveja, preguiça e luxúria) em cenas que poderiam ser vistas no cotidiano de sua região. Nos quatro cantos do painel encontramos círculos, dentro dos quais estão representados: a morte, o juízo final, o inferno e a glória.

Por optar por representar o tema a partir de situações cotidianas, cumprindo o objetivo educativo e moralista, esta obra prenuncia um gênero artístico surgido tempos depois e amplamente desenvolvido ali, nos Países Baixos: Pintura de Gênero

Fonte: http://www.casthalia.com.br/





 

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