Conhecimento Sem Fronteiras

Artigos de Filosofia


Incesto e Pedofilia

William-Adolphe-Bouguereau-The-Elder-Sister

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
 mitologia@esdc.com.br

Blog: www.lucienefelix.blogspot.com

Areté, em grego é excelência! Àquilo para o qual algo foi feito: a areté do olho é enxergar bem; a do médico, curar; a do guerreiro, vencer, a da empresa, lucrar.
Qual é a “Areté”, a excelência do Mal?

Sem sombra de dúvida, incesto e pedofilia encabeçam a lista dos mais abjetos e repugnantes delitos; seguramente os que mais causam repulsas e indignação à sociedade.

É precisamente o interdito, a proibição do incesto, como aponta o renomado antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908) o que opõe o homem ao animal: “constitui o passo fundamental graças ao qual, pelo qual, mas, sobretudo no qual se realiza a passagem da natureza para a cultura”, definindo o âmbito limítrofe entre o estado de natureza e o de civilização: “o limite oposto à [liberdade] livre atividade conferiu um novo valor ao irresistível impulso animal”. Somente nós valoramos.

A fim de ampliar ainda mais a compreensão desse alcance – de poder valorar e escolher –, a interdição do incesto é o que o pensador francês Georges Bataille (1897-1962), em sua obra “O erotismo” denominou “um fato social total”, isto é, dotado de uma “significação simultaneamente social e religiosa, mágica, econômica, utilitária e sentimental, jurídica e moral”. Entrevemos a centelha divina da ratio ao atentar que: “O incesto é uma dessas situações que só têm existência, arbitrária, no espírito dos seres humanos”. Por dispor da força que é o Espírito iluminado pelo lógos, instituto que nos distingue, somos livres para pensar, deliberar e escolher.

É perfeitamente compreensível que o tipo e intensidade de contato físico submetem-se às normas sociais e que a malícia não está nos atos em si. Mas, desde os antigos gregos, cuja cultura permitia certos costumes inconcebíveis nos dias atuais, sempre houve os doentiamente perversos.

Sobre a obscenidade ser uma relação, afirma Bataille: “Não existe ‘obscenidade’ como existe ‘fogo’ ou ‘sangue’, mas somente como existe, por exemplo, ‘ultraje ao pudor’. Isso é obsceno se essa pessoa o vê e o diz, não é exatamente um objeto, mas uma relação entre o objeto e o espírito de uma pessoa. (...) as acomodações com as necessidades da vida são numerosas”. Não há como banir a inerente sexualidade, apenas restringir os campos onde não nos é permitido manifestá-la. Somente estabelecendo valores que renunciem à barbárie, protegendo os inocentes da violência é que, em oposição à desordem animalesca “do gozo imediato e sem reserva”, realizamos nossa humanidade.

Regressemos à Helade a fim de discernir o que foi o Paidóphilos em seu ainda não desvirtuado [literalmente destituído de virtudes] sentido original. Do termo grego Paideuma, que remete a problema/fonema, uma espécie de placenta de onde tudo sai (e tudo o que “sai” é a palavra, ação por excelência) derivará a palavra Paidéia, ensino, orientação.

Paidagogós é àquele que toma pela mão e educa (culminará em nosso conhecido termo pedagogia) e originalmente pedagogo é o escravo encarregado de acompanhar os jovens à palestra e à escola. Paidóphilos seria, portanto, o instrutor (pai, tutor, enfim, uma pessoa mais velha) que dedica um tipo de amor, amizade (philía) pela criança. Entretanto, Paidóphilos, acaba por significar alguém que nutre pela criança sentimentos/impulsos eróticos.

Uma das mais lúcidas críticas ao desvirtuamento do Paidóphilos já entrevemos no diálogo de Platão “O Banquete”, sobre o Amor, escrito em cerca de 400 a.C. Pausânias, denunciando esse ponto nevrálgico, apontará que toda ação “em si mesma, enquanto simplesmente praticada, nem é bela nem feia (...) o que é bela e corretamente feito fica belo; o que não o é fica feio. Assim é que o amar e o Amor não são todo ele belo e digno de ser louvado, mas apenas o que leva a amar belamente”.

Reiterando, diz Pausânias: “(...) se decentemente praticado é belo; se indecentemente, feio. Ora, é indecente quando é a um mau [doente] e de modo mau que se consente [obtenção de vantagens] e, decente quando é a um bom e de um modo bom. E é mau aquele amante popular [o que sucumbe aos apelos da carne, pois Afrodite/Eros se subdivide em Urânia, a Celestial e Pandêmia, a de todo povo], que ama o corpo mais que a alma (...)”.

A philía confere uma nobreza que a impede de encobrir-se, Pausânias atesta: ”ser mais belo amar claramente que às ocultas”. Não por acaso, uma das características dos transviados que, desrespeitando limites, resvalam à bestialidade de incorrer no erro de praticar um interdito (incesto, pedofilia, necrofilia, etc.) é o empenho no cuidado de esconder suas ações.

A fim de ilustrar a dificuldade em distinguir o amor que é belo do que é feio, um desvio: “não é isso uma coisa simples”, diz Pausânias, relato que, quando minha primogênita contava com cerca de seis meses, viajei até uma cidade próxima, para que uma querida e já idosa caseira, a conhecesse.

Eis que a referida senhora, muitíssimo grata e feliz por nossa visita, pediu-me para trocar-lhe a fralda. Atendi-a prontamente, disponibilizando-lhe todos os apetrechos de higiene. Após retirar a fralda de xixi e limpá-la com lenços umedecidos, qual não foi minha surpresa testemunhar que ela começou a “fazer festa” nos genitais da tenra criança dizendo: "mas que gordinha! É muito linda, dá um cheiro pra avó". Segurava e erguia os pezinhos unidos, cobrindo-lhe de beijos a genitália e as nádegas, na maior demonstração de amor e carinho, como se tivesse uma dádiva diante de si.

Ao flagrar a perplexidade estampada em meu rosto, fitou-me com severidade e, em tom de repreensão indagou: "Ora, ora, você num beija não é?". Constatando que eu ainda ostentava visível expressão de espanto, sentiu-se ofendida: “Mas faça-me o favor, era só o que me faltava...". Constrangida, apazigüei-a enquanto pensava com meus botões: "Não D. Maria, talvez pela herança vitoriana, desconheço esses hábitos e, ciente dos estudos freudianos sobre a latente sexualidade infantil: troco, limpo e reponho tudo o mais rápido possível”.

Intensidade e formas de contato físico com os pequenos são culturais. Desde nossos ancestrais, os odores proporcionados pelo olfato constituem uma das mais prazerosas formas de carinho. Irresistíveis, é comum, nos sentirmos impelidos a “cheirar” os recém-nascidos. Vivenciar o episódio que relatei, fez recordar um antigo costume de meus antepassados, a tal “pitada no cacho de côco”. Consiste em, flagrando algum menininho da família, nu, reunir as falanges dos dedos de uma das mãos (como quem pega uma pitada de sal) tocar o escroto e, levando a mão às narinas, fazer de conta que sentiu o cheirinho do “cacho de côco”. As crianças riam e saiam correndo para se vestir.

Esse hábito era abandonado, naturalmente, tão logo as próprias crianças se mostrassem arredias (algo sempre respeitado!) ou, como na antiga Grécia, quando nos imberbes começassem a surgir indícios do início do período pré-púbere.

Como bem observou Bataille, é inegável que existem variáveis de lugares, circunstâncias e pessoas reservadas e que essas variáveis são sempre definidas arbitrariamente. Os limites, sempre incertos, tênues mutáveis. Àquilo que seu vizinho tem como meramente erótico, é capaz de ser aviltantemente pornográfico para você. E até mesmo entre cônjuges pode surgir desconforto nesse ponto.

Exemplificando a nudez, Bataille diz que ela “não é em si mesma obscena; ela se tornou obscena um pouco por toda parte, mas de maneira desigual”. Um simples traje de banho, conforme o lugar pode ou não chocar. A indumentária pode ser considerada indecorosa, conferir poder, vulgaridade ou afronta, conforme horário e ambiente. Nem mesmo o uso das cores escapa a interditos: não se batiza uma criança toda vestida de preto. Esclarecendo a relevância do contexto, aponta o estudioso: “E a nudez mais íntima não é obscena no consultório de um médico”.

Para que não lesemos, de modo irreversível, um inocente (vítima ou acusado), ultrajando a Justiça, sejamos prudentes e atentos ao fato de que, justamente por estarmos em zona cinzenta, à atenção aos detalhes na averiguação da suspeita desses delitos deve ser redobrada, investigada da forma mais profunda, abrangente e cautelosa possível.

Indubitavelmente, esse território é perfeito para acobertar o Mal que, silenciosa e confortavelmente abrigado na confiança (que o seio da família pressupõe), está bem camuflado para, insuspeitavelmente, realizar sua “areté(excelência) que é eclipsar o Espírito. Mas como aponta Rachel Gazolla (Titular de Filosofia Antiga da PUC-SP), “o mal não tem excelência, porque não é virtude”.

Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC
55 (11) 3663-1908 - esdc@esdc.com.br  -  www.esdc.com.br

imprimir

Envie Seu Comentário

Nome
* E-mail

Observações

* campo obrigatório