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Prometeu - Direitos do Homem e Hýbris

Heinrich_Fueger_1817_Prometheus

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
 mitologia@esdc.com.br

Blog: www.lucienefelix.blogspot.com

"a dialética é a suprema dádiva dos deuses,
o verdadeiro fogo de Prometeu"

Platão

Arquétipos (do grego, arché + typein = princípio que serve de modelo) são atemporais e universais. Na politeísta cultura grega, deuses e homens, imortais e mortais, interligados, são interdependentes.

Encabeçando o arquétipo de defensor dos direitos da raça humana temos o Titã Prometeu (pro=antes e metheus=vidência, aquele que sabe antes), que criou os homens do barro, feito de terra e de suas próprias lágrimas.

A analogia entre as palavras terra (do latim, humus) e homem é recorrente. Os helenos acreditavam que uma centelha divina, pois imortal, percorria e se aprofundava por toda terra geratriz. E, se simbolizando a história evolutiva do gênero humano, no mito judaico-cristão, Deus é único e supremo criador dos homens, no paganismo grego, é Prometeu o criador e benfeitor da humanidade.

Tanto para as criaturas do Deus de Abraão, quanto para as de Prometeu há um interdito: conhecimento. Que abismo espreita àquele que anseia pura e simplesmente... conhecer? O poder de um intelecto cego e desmedido, falível, é condenável. Ambos referem-se à discórdia inicial entre espírito e matéria, relatam a hýbris (desmedida, a insolente falta de limites), o castigo da queda, arrependimento e reconciliação final.

Quanto à experiência de se estar cônscio do mal e mesmo assim praticá-lo, diz Jung: “Talvez ele [o ser humano] deva experimentar o poder do mal e sofrer-lhe as conseqüências, porque só por este processo pode abandonar a sua atitude farisaica em relação às outras pessoas. Talvez o destino, ou o inconsciente, ou Deus – chamem-lhe o que quiserem – tenha que lhe dar uma boa pancada e fazê-lo rebolar no chão, porque só uma experiência drástica pode surtir efeito, tirá-lo do seu infantilismo, amadurecê-lo. Como pode alguém descobrir de quanto precisa para ser salvo se está absolutamente certo de que não há nada de que deva ser salvo?”.

Filantropo, venerado como sendo uma das divindades civilizatórias (como a deusa da Sabedoria e guardiã da Justiça, Palas Athena e o mestre da techné Hefestos), pioneiro ao atentar para nossas necessidades, Prometeu agiu, desde os primórdios, com irredutível firmeza em defesa da fragilidade da pessoa humana.

Sobre Prometeu, discorreram os apoteóticos poetas Hesíodo, Píndaro, o tragediógrafo Ésquilo (525 ou 524 a 456 a.C.) e seu contemporâneo, o Filósofo Platão. Na maioria das versões, diz-se ser filho de Jápeto com a deusa Thêmis, Justiça divina. Tem como irmãos Atlas, Menoécio e Epimeteu (epí=depois e metheus=ver, saber), seu gêmeo, que pensa somente depois de fazer.

Já sabendo de antemão quem venceria uma grandiosa e inevitável guerra porvir (o próprio nome já denuncia seu caráter oracular), Prometeu se aliou a Zeus contra as divindades mais antigas. Mas, rebelde, o defensor da humanidade nunca escondeu certo ressentimento por esse novo e (em seu entendimento) orgulhoso deus, pois fora também graças a seu empenho que o soberano do Olimpo conquistou seu posto. Aqui, entrevemos ser antiga a relutância do homem em se submeter. Há essa negação ao “superior”. O deus não é visto como representante da justiça inerente, mas como temível inimigo.

Em Píndaro, Zeus encarrega Prometeu de distribuir os dons e mecanismos de defesa entre todos os animais, inclusive aos homens. Atarefado, Prometeu atende ao apelo de seu irmão Epimeteu, que insiste em se incumbir da missão. Eis que Epimeteu se empolga: garras, presas pontiagudas, força, velocidade, acuidade visual, auditiva, faro excepcional, aptidão para se metamorfosear, de adentrar subitamente ao solo, de elevar-se aos ares, pelagem espessa, carapaças, condições para respirar dentro d’água e tantas outras qualidades foram dispersadas a torto e a direito.

Banalizando preciosas aptidões, Epimeteu, como o próprio nome diz, não se detém a pensar, não reflete antes de agir e, esquecido dos homens, exagera na dádiva a alguns animais (que além de força, ganharam também velocidade e presas dilacerantes, como os leões e os guepardos). Consumidos todos os recursos, quando chega nossa vez, bípedes implumes, somos deixados nus, frágeis e indefesos.

Quando Prometeu foi conferir a tarefa, constatando o estrago, lamentou profundamente a insensatez do irmão: e agora? O que seria dos homens, tão limitados em suas capacidades físicas? Desprotegidos, tornar-se-iam presas fáceis para inúmeros predadores tão bem guarnecidos. Prevendo o aniquilamento de sua criação, contrariando os ditames de Zeus, que já havia lhe negado um apelo seu dessa natureza, Prometeu rouba o fogo divino (conhecimento) e dá-lhes às suas criaturas, assegurando assim a superioridade dos homens sobre os demais animais. Zeus não tarda a enviar Pandora como castigo (vide artigo “Parmênides, Heráclito e a Caixa de Pandora” já publicado nesse Blog).

O progresso da humanidade se deve à capacidade dos homens de, aconchegados em torno do calor do fogo, tornarem-se sociáveis. Desse modo, descobrimos e compartilhamos a linguagem, os números, o movimento dos astros, a memória, pudemos enfim, “pensar antes” de agir: preparamos alimentos, tecemos vestimentas, confeccionamos tigelas e tijolos, construímos casas, fundimos ouro, prata e ferro, aramos a terra, cultivando o sustento. Mas, infelizmente, mesmo providos de inteligência, vontade, astúcia, avidez, coragem e de tantas outras qualidades, os homens eram miseráveis, pois lhes faltava a política, qualidade necessária para que se relacionassem harmoniosamente entre si.

Sem união na pólis não se consegue vencer as adversidades, promover o Bem comum: “E, ao tentar se reunirem em grupo, a anarquia reinante fazia de todos inimigos e vítimas de querelas militares”. Acumulando cada vez mais informações, detendo inúmeros conhecimentos, mas ainda sem sabedoria, os homens passaram a se autodestruir, tornando todo ambiente insustentável.

A arte de viver em conjunto, ser “zoopolitikon” para Platão, é indispensável para o progresso das cidades e para a instituição de um governo virtuoso e justo, enfim, para o bem da própria humanidade.

Cada vez mais confiantes num intelecto puramente “científico” como sendo “a Verdade”, incendiados por vanglórias (hýbris), os homens afrontavam os deuses, já não os invocavam nem rogavam por sua proteção. Orgulhavam-se de haver cada vez menos diferença entre eles e os imortais. A felicidade humana já não dependia do acaso, do destino, de caprichos divinos. Prometeu finalmente criara oponentes ingenuamente crentes de estarem à altura (ou acima?) de Zeus. Como lhe disse Oceano, o parentesco influi e muito: os Titãs estavam vingados!

Em Ésquilo, mesmo sofrendo severa punição, o benfazejo não se dobra. Por ter desrespeitado a advertência de Zeus, Prometeu é condenado a 30 mil anos de prisão. Acorrentado a uma rocha (simbolizando a matéria) no Cáucaso, todos os dias uma águia vem bicar-lhe o fígado, regenerado durante as noites.

Paira, até hoje, o suspense insinuado por Prometeu: de que Zeus ainda será ser destronado por um dos seus filhos. Ameaçado, é coagido a falar sobre o que viu, mas se recusa terminantemente a dizer: “Nada, força nenhuma pode constranger-me a revelar-lhe o nome de quem deverá destituí-lo de seus poderes tirânicos!”.

Esquecido, sua grande dor é constatar que, vaidosos, bélicos e também como ele, extremamente presos à matéria, os seres humanos, mesmo animados pelo fogo/conhecimento divino, possuem um espírito ressentido, guiado por um intelecto revoltado. Com a imaginação assim exaltada, não mais os surpreende sucumbir à perversão. Seja como opressores ou como oprimidos, se degradam em sua própria efemeridade.

Com consentimento de Zeus, Hércules mata a águia e graças à intervenção do centauro Quíron, Prometeu finalmente se reconcilia com o ordenador do Cosmos, encontrando paz.

Preocupado com a insolência (hýbris) humana que poderia antecipar-lhes o aniquilamento ou algo pior (a profecia de Prometeu se cumprirá?), Zeus delegou a seu mensageiro Hermes a tarefa de distribuir igualmente entre todos os homens pudor e justiça. Disse ainda que aqueles que não os tivessem, por estarem contra o princípio unificador da sociedade, deveriam morrer. O que o arauto dos Direitos do Homem queria era assegurar-nos a dignidade da liberdade. Somos livres. Mas sem pudor (aidós=vergonha, respeito) e justiça não se ascende ao Olimpo.

Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC
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