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O Mercador de Veneza - Shakespeare

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
 mitologia@esdc.com.br

Blog: www.lucienefelix.blogspot.com

Por maior que seja a patifaria, aquele que a comete escapa a toda e qualquer punição, desde que demonstre habilidade suficiente para escapar às malhas da lei penal.

Rudolf Von Ihering

 

Embora permeada por outras sublimidades da alma, nessa obra, o mote central é a Lei e a Justiça. Mais precisamente sobre a "a letra da lei", o que está escrito, objetivamente, e o sentimento de Justiça que subjaz e à qual deve estar amalgamada toda e qualquer decisão de Direito.

Na peça, um pai, preocupado com o futuro de sua linda e rica herdeira, a fim de assegurar o mais virtuoso consorte para sua filha, antes de morrer, lança mão de um ardil fantástico, como atesta a criada Nerissa: "Vosso pai foi sempre virtuoso, e as pessoas assim pias ao morrerem têm inspirações felizes".

Alvoram-se nobres, de todos os cantos do mundo, dispostos a tentar a sorte de unir o destino ao da disputada donzela. A encantadora Pórcia, primeira heroína do autor a se destacar também por atributos intelectuais, resoluta confirma: "Ainda que eu chegue a ficar tão velha quanto Sibila, morrerei tão casta como Diana, no caso de não ser conquistada segundo as condições estipuladas por meu pai".

Eis que essa mocinha, passando-se por eminente "consultor" jurídico, irá protagonizar uma das mais eloqüentes cenas de tribunal legada pela genialidade do famoso poeta inglês.

A fim de obter meios de pleitear a mão da moça, Bassânio, um rapaz agoniado por sustentar um estilo de vida acima de suas posses, se vê refém de problemas pecuniários e recorre ao bondoso coração de um amigo. Antônio se comove com o apelo do amigo, mas avisa que tudo o que tem está no mar e que, se Bassânio conseguir levantar crédito em seu nome, em Veneza, tudo estará resolvido.

Numa praça da pujante e próspera Veneza, o ansioso Bassânio encontra o judeu Shylock e firma contrato de empréstimo de Três mil ducados, por três meses e Antônio como fiador.

Shylock, acalenta profundo ódio pelo mercador: "Por ele ser cristão é que o odeio, mas acima de tudo, porque em sua simplicidade vil, dinheiro empresta gratuitamente e faz baixar a taxa de juros entre nós aqui em Veneza. Se em falta alguma vez puder pegá-lo, saciado deixarei meu antigo ódio (...) ele insulta-me, meus negócios condena e o honesto lucro que de interesse chama. Amaldiçoada minha tribo se torne, se o perdoar".

Outro ponto nevrálgico dessa peça é a questão relativa à usura, ou seja, ao empréstimo mediante cobrança excessiva de juros. Repleta de estrangeiros, mercadores com inúmeros negócios, Veneza fervilha e desponta acelerada no cenário comercial Renascentista.

Os juros, decorrentes da defasagem do valor, são justos até em casos de empréstimos de pai para filho. Mas o ato de lucrar tão e somente por dispor de recursos, fazendo do desespero e da desgraçada necessidade pecuniária alheia um meio de vida era questionável, sobretudo para a mentalidade cristã. Sendo assim, Antônio deixa claro a Shylock que, embora nunca empreste nem peça emprestado a juros, para socorrer ao amigo, se dispõe a romper seus hábitos.

Categórico, para Shylock, não sendo roubo, todo lucro é benção e entende perfeitamente lícito seu modo de ganhar a vida. Cita a ancestral figura de Jacó, quando cuidava das ovelhas de seu tio Labão: "ele e o tio assentaram que todos os cordeiros malhados e de rajas ficariam para Jacó, à guisa de salário, as ovelhas em cio foram postas, no fim do outono, junto dos carneiros. E quando entre esses animais o ato da geração se processava, pelou-me algumas varas o astucioso pastor e, ao trabalhar a natureza, frente as pôs das ovelhas voluptuosas que, concebendo então, no tempo próprio só pariram cordeiros variados, que com Jacó ficaram".

Não convencido, Antônio contesta dizendo que o lucro de Jacó foi mero acaso: "Não dependia dele o resultado. É a mão do céu que tudo faz e guia. Mas justifica a história o cobrar juros? Vossa prata e vosso ouro são, acaso, ovelhas e carneiros?".
E o judeu: "Não vos posso dizer ao certo; mas os multiplico com a mesma rapidez (...) Três mil ducados... Soma bem redonda. Por três meses em doze. Ora vejamos quanto isso vai render".

O empenho de Shylock não é mais pelo lucro. Atingido em seu timós, sua honra (seu "phrenas", diria Homero), sucumbe a um dilacerante ódio ao mercador: "Senhor Antônio, quantas, quantas vezes lá no Rialto fizestes pouco caso do meu dinheiro e de eu viver de juros! Suportei tudo sempre com um paciente encolher de ombros, pois o sofrimento é apanágio de toda a nossa tribo. De tudo me chamáveis: cão, incrédulo, degolador, além de me escarrardes neste gabão judeu, e tudo apenas por eu usar o que me pertencia. Ora bem; mas agora está patente que precisais de mim (...). Deveria perguntar-vos: 'Cachorro tem dinheiro? Será possível que um cachorro empreste a alguém três mil ducados?' Inclinar-me devo até ao chão e, em tom de voz de escravo, humilde a murmurar, quase sem fôlego, dizer assim: 'Na última quarta-feira, caro amigo, cuspistes-me no rosto; noutro dia, chamaste-me de cão; e em troco dessas cortesias, preciso ora emprestar-vos tanto dinheiro assim?"

Antônio deixa claro que se Shylock quiser emprestar seu dinheiro, não o faça como se faz a amigos, pois: "em que tempo a amizade cobrou do amigo juros de um metal infecundo?".

Dissimulado, Shylock o enreda: "Vede como vos exaltais! É meu desejo prestar-vos um obséquio, conquistar-vos a amizade, esquecer-me das injúrias com que me maculastes, suprir vossa necessidade, sem tirar proveito nenhum do meu dinheiro. É amiga a oferta. (...) Quero dar-vos prova dessa amizade. Acompanhai-me ao notário e assinai-me o documento da dívida, no qual, por brincadeira, declarado será que se no dia tal ou tal, em lugar também sabido, a quantia ou quantias não pagardes, concordais em ceder, por eqüidade, uma libra de vossa bela carne, que do corpo vos há de ser cortada onde bem me aprouver".

Com essa inusitada proposta, Shylock quer desfazer a idéia de interesseiro, pois o que lucraria com um pedaço de carne que, por ser humana, diferente duma carne de carneiro ou vitela, para nada tem serventia?

Apesar de Antônio ter encorajado o amigo Bassânio, insistindo que um mês antes da letra vencer, seus barcos terão retornado, seus negócios naufragam. Vencido o prazo, Shylock insiste em vingança reiterando seus motivos: "Ele me humilhou, impediu-me de ganhar meio milhão, riu de meus prejuízos, zombou de meus lucros, escarneceu de minha nação, atravessou-se-me nos negócios (...) E tudo, por quê? Por eu ser judeu. (...) Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me ensinastes, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda".

Após sucesso na escolha dos enigmáticos escrutínios, fazendo jus à mão de Pórcia, Bassânio esclarece a noiva, que "para obter recursos, penhorei-me a um amigo mui querido e o penhorei ao seu pior inimigo".

Salânio confirma a irredutibilidade de Shylock: "Não vi nunca uma criatura sob a forma de homem que revelasse tão feroz empenho em desgraçar um homem (...) o próprio doge (maior autoridade Jurídica de Veneza), vinte mercadores, os senadores de maior prestígio tentaram persuadi-lo, sem que nada conseguisse do pleito demovê-lo tão odioso, baseado na justiça, numa letra vencida e numa multa".

Testemunhando o desespero do futuro marido, a noiva intervém e considerando a quantia irrisória, se dispõe a pagar muito mais. Mas Bassânio segura uma carta de Antônio nas mãos: "Querido Bassânio, todos os meus navios naufragaram, meus credores tornaram-se cruéis, minha situação financeira é desesperada, a letra que eu tenho com o judeu já está vencida (...) não me será possível viver (...)".

Solidária, Pórcia concorda que o futuro marido parta imediatamente em socorro ao amigo.

Antônio insiste em argumentar com Shylock, mas esse está absolutamente irredutível e todos sabem que "Se fossem denegados aos estrangeiros todos os direitos que em Veneza desfrutam, abalada ficaria a justiça da república, pois o lucro e o comércio da cidade se baseiam só neles". Confiante nas leis de Veneza, brada o judeu: "Invoco a lei!".

Numa Corte de justiça, o julgamento do mercador de Veneza tem início. O doge indaga: "Está presente Antônio?" e ele responde: "Às ordens de Vossa Graça". O doge prossegue dizendo a Antônio que sua situação causa comoção. E este afirma saber que o doge tem se esforçado e muito para atenuar sua rigorosa pena, mas que está disposto a suportar com grande tranqüilidade de alma a cólera de Shylock.

O doge pede que Shylock adentre a sala e diz que, embora o mundo pense que ele tenciona persistir nessas provas de crueldade, isso será somente até a última hora do processo, que depois disso mostrará consideração. Que movido pelo amor e o sentimento de humanidade dispensará o castigo ao mercador.

"Já expus a Vossa Graça o que pretendo, como jurei por nosso santo Sábado cobrar o estipulado pela multa", proclama Shylock. "Se mo negares, que com o risco seja das leis e liberdades de Veneza. Decerto haveis de perguntar-me a causa de eu preferir um peso de carniça a ter de volta os meus três mil ducados. E então? Se um rato a casa me estragasse, e para envenená-lo eu resolvesse gastar dez mil ducados? (...) de igual modo, não sei de outra razão, nem saber quero, se não for o ódio inato e a repugnância que Antônio me desperta e que me leva a persistir assim numa demanda".

Bassânio oferece o dobro a Shylock e esse deixa claro que, como sabemos, não se trata de valores venais. Todos pelejam para que o credor mostre piedade, para que também possa encontrá-la, mas ele é resoluto: "Que castigo tenho a temer, se mal algum te faço? (...) essa libra de carne, que ora exijo, foi comprada muito caro; pertence-me; hei de tê-la. Se esse direito me negardes, fora com vossas leis! São fracos os decretos de Veneza".

O doge informa estar aguardando por Belário, um jurista erudito, que mandou vir de Pádua, para estudar o caso.

Shylock, permanece impassível às críticas: "Só vim aqui para impetrar justiça". Nesse instante, o escrivão introduz o jovem Baltasar (na verdade Pórcia, com trajes de doutor em direito) trazendo uma carta de recomendação de Belário, onde este esclarece que o portador desta, um renomado doutor de Roma, estava a par da controvérsia entre o judeu e o mercador Antônio e que com seu saber, cuja profundidade seria incapaz de elogiar suficientemente, está apto a atender o chamado do doge.

O doge recomeça indagando a Baltasar se é de seu conhecimento a dissidência que se discute naquela corte. Pórcia, digo, Baltasar, confirma: "Conheço os pormenores da pendência. Onde está o mercador? Qual é o judeu?". Após distingui-los, dirige-se a Shylock e afirma: "Assaz estranha é a natureza dessa vossa causa. Mas as leis de Veneza não vos podem desatender, se persistis no intento". Após confirmar o reconhecimento da letra por ambos, Pórcia prossegue dizendo que é preciso que o judeu se mostre clemente. Ao que esse responde: "Constrangido por que meios, não podereis dizer-me?"

O jurista é mesmo brilhante: "A natureza da graça não comporta compulsão. Gota a gota ela cai, tal como a chuva benéfica do céu. É duas vezes abençoada, por isso que enaltece quem dá e quem recebe. É mais possante junto dos poderosos, e ao monarca no trono adorna mais do que a coroa (...) atributo é de Deus; quase divino fica o poder terreno nos instantes em que a justiça se associa à graça. Por tudo isso, judeu, conquanto estejas baseado no direito, considera que só pelos ditames da justiça nenhum de nós a salvação consegue (...) Quando disse, foi para abrandar o teu direito; mas, se nele insistires, o severo tribunal de Veneza há de sentença dar contra o mercador".

Shylock insiste que só reclama a aplicação da lei, a pena justa cominada na letra já vencida. Quando o juiz indaga se há como pagar a dívida, Bassânio confirma que até o dobro, mas que "caso isso ainda não chegue, fica patente que a malícia vence, nesse pleito, à lisura".

Reitera-se que força alguma pode em Veneza mudar as leis vigentes, pois, diante de um exemplo desses, muitos abusos viriam a insinuar-se na república. E ao ouvir que isso "Não pode ser", Shylock se entusiasma com fervor: "Daniel veio julgar-nos! Sim, um novo Daniel! Ó sábio e jovem juiz, como eu te acato!". Pedindo para examinar a letra, o juiz a recebe e ouve de um empolgado Shylock: "Aqui está ela, reverendo doutor: aqui está ela".

Ainda se clama: "Três importes da dívida, Shylock, te oferecem", ao que o judeu convicto: "Um juramento! Um juramento! Tenho no céu um juramento. Poderia na alma lançar o fardo de um perjúrio? Nem por toda Veneza".

O tribunal prossegue: "O documento já está vencido. Legalmente pode reclamar o judeu, por estes termos, uma libra de carne, que ele corte de junto ao coração do mercador". E roga: "Sê compassivo; aceita triplicada a importância da dívida e permite-me rasgar o documento". Shylock diz: "Após o vermos liquidado de acordo com seus termos. Mostrastes ser juiz de grande mérito; conheceis bem as leis; foi muito clara a exposição de há pouco. Assim, intimo-vos, pela lei de que sôis um dos pilares mais dignos, a emitir o julgamento. Juro pela minha alma que nenhuma língua humana é capaz de demover-me de minha decisão".

Resignado, é com impaciência que Antônio suplica a corte que pronuncie a sentença. O juiz diz que consiste a decisão em preparar o peito para a faca do credor. Shylock não se contém de alegria: "Oh nobre juiz! Oh extraordinário jovem!". O juiz reitera que a intenção e o espírito da lei estão de acordo com a penalidade cominada na letra e Shylock rejubila-se: "É muito certo. Oh juiz íntegro e sábio! Quanto, quanto mais velho não serás do que aparentas!".

O juiz pergunta se Shylock já deixou uma balança no jeito, para pesar a libra de carne e um cirurgião, para evitar que Antônio venha a morrer de hemorragia. Ele responde que isso não se encontra estipulado, ao que juiz afirma que, por caridade, seria conveniente. Mas o judeu diz que não pode achar um cirurgião naquele momento e que isso não consta na letra.

Eis que a Corte confirma o direito de Shylock: "Pertence-te uma libra aqui da carne do mercador; a Corte o reconhece, porque a lei o permite". Shylock, em êxtase proclama: "Oh juiz íntegro! Oh juiz sábio! Isso, sim, que é sentença! Vamos logo; preparai-vos."

O juiz então intervém: "Um momentinho apenas. Há mais alguma coisa. Pela letra, a sangue jus não tens; nem uma gota. São palavras expressas: 'Uma libra de carne'. Tira, pois, o combinado: tua libra de carne. Mas se acaso derramares, no instante de a cortares, uma gota que seja, só, de sangue cristão, teus bens e tuas terras todas, pelas leis de Veneza, para o Estado passarão por direito".

Ao ouvir isso, é Graciano, quem não se contém de alegria: "Oh juiz honesto! Toma nota, judeu: quanto ele é sábio!". Perturbado, Shylock indaga se a lei diz isso. O juiz responde que ele pode ver o texto: "reclamaste justiça, fica certo de que terás justiça, talvez mesmo mais do que desejaras".

Shylock recua afirmando que, nesse caso, aceita a proposta de que lhe paguem três vezes a importância da dívida. Quando Bassânio se apressa em dar o dinheiro, o juiz intervém: "Devagar! Justiça total para o judeu. Nada de pressa. Só tem direito à multa estipulada".

Novamente em glória, Graciano profere: "Ó judeu! Que juiz idôneo e sábio. (...) Um segundo Daniel, judeu, um novo Daniel! Agora, cão, peguei-te firme (...). Um segundo Daniel! Outro Daniel! Judeu, muito obrigado por me haveres ensinado esse nome".

Shylock apela. Em vão. Ao intentar se retirar, o juiz diz: "espera aí, judeu! A lei ainda tem outras pretensões a teu respeito. Diz a lei de Veneza, expressamente, que se a provar se vier que um estrangeiro, por processos diretos ou indiretos, atentar contra a vida de um dos membros desta comunidade, há de a pessoa por ele assim visada, assenhorear-se da metade dos bens desse estrangeiro, indo a outra parte para os cofres públicos. A vida do ofensor à mercê fica do doge (...) Agora, ajoelha-te e ao doge implora que te dê o perdão". O doge se manifesta: "Para que vejas como nosso espírito é diferente, a vida te concedo antes de ma pedires".

Desolado, Shylock profere: "Não, a vida também; não perdoeis nada. Tirais-me a casa, se a privais do esteio no qual ela se firma; da existência já me privastes, quando me deixastes sem os recursos com que me sustento".

Indagado se está contente, sem alternativa, Shylock confirma que sim. Sente-se arrasado e, cabisbaixo, roga para ir embora. Obtém consentimento. A corte se encerra.

Cabe recurso! Embora de 1596, esse julgamento não precluirá. O judeu será defendido do "artifício infame" com apropriada lucidez pelo jurista alemão Rudolf Von Ihering (1818-1892), em sua obra "A luta pelo Direito". Retornaremos a esse tribunal para perscrutar onde Diké (a Justiça dos homens) se funde ou conflita com Thêmis (a Justiça divina).

 

Saiba mais:

Shakespeare, William - O Mercador de Veneza.

Assista ao filme "O Mercador de Veneza" com Al Pacino.

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