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Homo consummus desenfreorus: est Sapiens?

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
 mitologia@esdc.com.br

Blog: www.lucienefelix.blogspot.com

Amigos, no artigo anterior, abordando a virtude da Prudência em Aristóteles, indiquei-lhes um vídeo que já foi assistido e está sendo debatido por milhões de pessoas em todo o mundo. Trata-se de “The story of stuff” (A história das coisas), de Annie Leonard, disponível em meu Blog. Em cerca de 20 minutos, somos instigados a refletir sobre nosso planeta, as pessoas no mundo e, conseqüentemente, sobre nós mesmos, pois somos seres de e em relação. Considerando que um dos principais objetivos dessa coluna é fomentar o Pensar, nada mais adequado.

Minha audaciosa intenção para o artigo desse mês era abordar a questão da “phronesis” em Platão, ou seja, como a Alma conhece e se dá a conhecer. O que é e onde se instala esse reduto, essa instância da psyché que nos possibilita “ver o todo”, ponderar, deliberar e, exercendo a liberdade, enfim escolher. Esse tema é inegavelmente relevante e muitíssimo profundo, sobretudo para a base, a fundação de uma Teoria do Conhecimento (epistéme), ponto nevrálgico e bastante discutido na Filosofia.

Mas ponderei: é fim de ano, época de retrospectivas, de balanços de vida, de festas e, inevitavelmente, de consumo desenfreado.

A questão do consumismo, que vislumbra seu ápice sazonal nesse mês, se impôs como foco. Optei então por transcrever pequeno trecho, apropriadamente intitulado: “Tenha somente o necessário” da sapientíssima obra “Sócrates e a Arte de Viver – um guia para a filosofia no cotidiano”, de J.C. Ismael, jornalista, escritor, um dos intelectuais mais atentos e iluminados com quem contamos.

“O homem que se conhece verdadeiramente mediante o exame e a prática da virtude está livre da tentação de possuir bens materiais além dos estritamente necessários para viver. Mas aquele que não tem força suficiente para resistir ao desejo de amealhá-los está no caminho oposto da felicidade: quanto mais tem, mais sente vontade de possuir, numa ânsia ilimitada de satisfazer-se sem o conseguir, pois sempre haverá algo novo para comprar, seja-lhe ou não necessário. Uma pessoa assim está em eterna competição com quem ostenta mais, sem pudor de demonstrar a falta de limite para exibir-se perante os outros, como se a posse desmedida de bens fosse a demonstração de superioridade perante eles. Mas essa superioridade é ilusória, constatada por quem algum dia conhecerá a inutilidade da sua ganância, afundando na tristeza que ela lhe trouxe.

Contentar-se com o que possui está entre os mandamentos de viver bem; e, diante das múltiplas ofertas ao seu dispor, alegrar-se por não precisar de nenhuma delas: as coisas indispensáveis são sempre muito poucas. A tentação de possuí-las, porém, pode ser forte, mas quem a ela resiste deve vangloriar-se de ter derrotado esse impulso – o mesmo que o leva a consumir-se em paixões sensuais – , alcançando a vitória sobre si mesmo. O desejo de possuir coisas inúteis faz parte daquilo que a natureza humana tem de misterioso, pois enquanto a razão mostra que elas são desnecessárias, um impulso nascido em tempos imemoriais impele a possuí-las cada vez mais, num processo difícil de ser interrompido.

À obsessão de possuir muitos e quase sempre inúteis bens liga-se naturalmente outra, igualmente prejudicial: a vaidade. Pouca coisa pior pode acontecer a uma pessoa do que ser dominada pela vaidade, a insidiosa inimiga de uma vida virtuosa. Além disso, o vaidoso desconhece a própria ignorância, e sequer se dá ao trabalho de disfarçá-la porque lhe faltam qualidades como a temperança e a sabedoria, sobrando-lhe os defeitos do egoísmo e da importância indevida que se dá. O vaidoso nutre-se das coisas que possui e que exibe na falta de possuir uma importância maior que ilusoriamente pretende ter. O vaidoso não tem amigos verdadeiros porque também não pode sê-lo, pois o que lhe importa é exibir seus bens materiais – que, por consistirem sua razão de viver, são irrelevantes para quem procura no outro uma comunhão espiritual, muito diferente da que o vaidoso pode oferecer”.

Àqueles para os quais PIB não é tudo, havendo de se considerar também o FIB (Felicidade Interna Bruta)*, disponibilizei mais trechos dessas preciosas "lições de socratismo" e também uma lista de “luxos que não tem preço”, em meu Blog.

Encerro desejando a todos vocês amigos, um luminoso rito de Pax, Felix, que o ano vindouro seja pontilhado de realizações éticas no mundo da práxis e de profícuas reflexões filosóficas aqui, na Carta Forense.

 

Saiba mais:

Ismael, J.C. – Sócrates e a arte de viver – São Paulo, SP. Editora Ágora, 2004.

(*) Felicidade Interna Bruta (FIB) ou Gross National Happiness (GNH) é um conceito de desenvolvimento social criado em contrapartida ao Produto Interno Bruto (PIB).
O termo foi cunhado pelo rei do Butão Jigme Singye Wangchuck em 1972 em resposta a críticas que diziam que a economia do seu país crescia miseravelmente. Essa declaração assinalou seu compromisso de construir uma economia adaptada à cultura do país, baseada nos valores espirituais budistas. Assim como diversos valores morais, o conceito de Felicidade Interna Bruta é mais facilmente entendido a partir de comparações e exemplos que definido especificamente.
Enquanto os modelos tradicionais de desenvolvimento primam pelo crescimento econômico como objetivo primordial, o conceito de FIB se baseia no princípio de que o verdadeiro desenvolvimento de uma sociedade humana se dá quando o desenvolvimento espiritual e o material acontecem lado a lado, complementando e reforçando um ao outro. Os quatro pilares da FIB são a promoção de desenvolvimento sócio-econômico sustentável e igualitário, a preservação e a promoção de valores culturais, a conservação do meio-ambiente natural e o estabelecimento de boa governança (Fonte Wikipédia).

 

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