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ETHOS: entre a verdade e a invenção das razões

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
mitologia@esdc.com.br

A diferença entre as ciências exatas (desumanas?) e as ciências humanas (imprecisas e inexatas?) é fundamentalmente de linguagem. E isso não é pouca coisa. Os cientistas das áreas de exatas não se reúnem num congresso a fim de obter consenso sobre o conceito da palavra "estrutura", por exemplo. Em "humanas", somente para essa palavra já foram estabelecidos nada menos que trinta e sete conceitos distintos. Cabe lembrar que todo conceito nasce pela igualação do não-igual.

Se a matemática e a geometria (musa inspiradora de Platão), por exemplo, são ciências "puras", "a priori", pois dispensam a experiência e estão muito bem acomodadas no abstrato mundo das idéias (Ideal) pois, independente da época, geografia ou cultura, duas vaquinhas com mais duas vaquinhas soma o total de quatro vaquinhas (e não se discute mais isso), o mesmo não se pode dizer do rico e fértil solo das ciências humanas.

Enquanto o Sol, na física, define-se friamente como sendo uma massa de Hidrogênio em fissão nuclear que se transforma em Hélio, na área de humanas, o Sol é um fogo sempre vivo (fragmento 94 de Heráclito). O astro-Rei não dará conta da colossal magnitude com a qual inflama de forma desmedida o apoteótico ego humano, iluminando sua sensibilidade ou obscurecendo-o na estupidez da ignorância.

Um exemplo claro de como a linguagem quase nos deixa numa aporia (a/póros = sem saída) é fornecido por Platão na República: tomemos nossos cinco dedos. São diferentes ou são semelhantes? Podem ser (e são) as duas coisas! É nesse momento que caminhamos para o nous (poder de intelecção que está na alma). Os dedos participam da idéia de diferença e de semelhança dos dedos. Retomando, sujeito ao referencial, o Sol é e não é do tamanho de um pé (frag. 3 de Heráclito).

 Segundo o Filósofo Henrique C. De Lima Vaz, todas as coisas são physis (numa tradução ainda insatisfatória: natureza). Nosso modo de ser (modus vivendi, modus operandi) é transformá-la e a isso chamamos ethos (do grego "habitat", hábito, costume, caráter). Sendo nossa conduta construto cultural, é no ethos que se alinhava toda história da humanidade, em constante mudança (novamente Heráclito), sempre em processo de vir-a-ser.

A sociedade na qual nos inserimos espera que sejamos sujeitos éticos; não agir em conformidade com as regras sociais, com o ethos vigente, torna-nos marginais. Romper com o status quo, fazer um revolução ética (não nos basta receber passivamente os valores e repassá-los adiante sem sequer os questionarmos) não deve ser fruto de caprichosa e infundada rebeldia, mas de arrazoamento e reflexão do sujeito ético.

Embora nossos "valores" nem sempre estejam em consonância com a própria natureza, detemos o poder de alterá-la conforme nossas necessidades: criamos/estabelecemos valores e depois escolhemos, ordenamos, hierarquizamos. A esse jogo de opções chamamos liberdade.

Axiológico, o homem é um ser que valora e os valores (que culminarão num ethos mesmo que pútrefo) são móveis. Apenas o "poder" de valorar permanece.

O que está em permanente conflito na physis (da qual participamos) é força, potência. O Homem "mede" o outro e indaga a si mesmo: que poder (do grego, krátos) você tem? Considerando que a dynamis da vida é conflito (como já alertava o pré-socrático Heráclito de Éfeso - 540-470a.C), o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) alega que "a excelência do homem está em buscar, pela discórdia a concórdia", afinal, como poderia surgir a Justiça sem que houvesse combate, guerra e conflito?

Num trecho da obra "As viagens de Gulliver", de Jonathan Swift, o autor relata que, certa vez, um príncipe havia indagado sobre quais eram as causas ou motivos que faziam um país entrar em guerra com outro. Após torná-lo ciente de que eram inumeráveis (as razões), mencionou algumas delas, as quais transcrevo a seguir: "Às vezes tratava-se da ambição de príncipes que jamais achavam que tinham terras e povo o bastante para governar; outras vezes era a corrupção de ministros que introduziam seu senhor em uma guerra a fim de deter ou desviar os clamores dos súditos contra sua má administração. As diferenças de opinião também costumavam custar muitos milhões de vidas. (...) Nenhuma guerra é mais furiosa ou sangrenta, ou ainda tão prolongada, do que as provocadas por diferenças de opinião, principalmente quando se trata de coisas sem importância".

Refletindo sobre uma das máximas do sofista Protágoras "Eu não busco Verdades, eu invento razões", convém atentarmos para a ingênua e/ou pretensiosamente arrogante proposta iluminista em apostar tanto na intocabilidade do lógos. Animais político-racionais, somos polítropos: mesmo que a Verdade seja uma só, as razões (lógicas traiçoeiramente instrumentais) podem ser muitas.

Na maleabilidade dos discursos (representações), falando ou escrevendo, comunicação é reduto de Hermes, deus grego brincalhão, astuto e enganador. Se até mesmo as "exatas" já estão revendo seus conceitos (em condições normais, a água ferve a 100ºc: por enquanto) pautemos nossa conduta constantemente atentos ao ethos.

Saiba mais:

A Polidez – Virtude das aparências. Régine Dhoquois (Org.). Trad. Moacyr Gomes Jr. - Porto Alegre, 1993. L&PM Editores.
A Etiqueta no Antigo Regime. Renato Janine Ribeiro. São Paulo, 1990. Editora Brasiliense.

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