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A morte de Ivan Ilitch

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
mitologia@esdc.com.br

“O que justifica o ato de viver é a solidariedade, ativa e iluminada que aniquila o eu egoísta e fornece a paz interior”
Luiz Venere Décourt (1911-2007)

Nessa magistral obra-prima (considerada por Vladimir Nabokov “a mais artística, mais perfeita e de mais sofisticada realização da história mundial”) legada pelo conde russo Leon Tolstói (1828-1910), defrontamo-nos com o soberano do destino: o fim. Eis nosso denominador comum.

Fim! Decreta a morte. Pode-se até contestar que seja ou não o “fim último”, mas abster-se desse encontro marcado ninguém conseguiu. A morte é uma prova final, aplicada a qualquer momento; e por mais que se creia não estar preparado, todos somos aprovados.

Impossível não se comover com esse personagem: “A vida de Ivan Ilitch era das mais simples, das mais vulgares e, contudo, das mais terríveis. Juiz do Tribunal, falecia aos 45 anos”.

Escarafunchando a angustiada consciência do irrepreensível juiz Ivan Ilitch, em breves 85 páginas, Tolstói nos brinda com o relato de um “acerto de contas”, revelando a futilidade do modelo de vida burguês. Será, preso ao leito, frente a morte certa, que a vida de Ivan Ilitch se revelará mais livre, mais autêntica e pujante. As preocupações corriqueiras, os afazeres mundanos impediram-no de pensar nela.

É com espanto que, diante da morte iminente, atina que viveu uma vida de aparências, tanto no desempenho de seu trabalho, quanto no casamento e em suas demais relações sociais. Ivan Ilitch conclui que sua existência fora desprovida de um propósito mais significativo, que não passou daquilo que a sociedade, com seu mero jogo de interesses, de galgar posições de prestígio, de “parecer estar bem”, preconizava. Em resumo: uma autêntica vida de falsidades. Para seu desespero, até mesmo àqueles a quem julgava ser fundamental e amado, sua mulher e filhos, vivenciam sua convalescênça como sendo um capricho inexplicável (a mulher) ou um aperreio, um estorvo (sua filha).

O sucesso profissional, o empenho pela manutenção da ordem, do status quo, daquilo que, aos olhos dos outros era tido como o “certo”, sempre fora o norte de sua “aparentemente” bem sucedida (na verdade, ordinária) vida: “Não era um adulador, nem quando menino, nem quando homem feito, porém, desde a infância, sentira-se naturalmente atraído pelas pessoas que ocupavam posição elevada na sociedade, tal como mariposas pela luz, e assimilava-lhes as maneiras e as opiniões, forçando ainda relações amistosas com elas”.

Segundo perspicaz análise de Gabriel Ferreira: “Ivan Ilitch dá um rosto à imprudência moderna. Ele é o juiz bem sucedido, que crê desempenhar perfeitamente o seu papel, ou seja, que “aplica” o Direito. Ele é o “escravo da lei”, a “boca da lei”, que no fundo no fundo sabe que tais coisas não existem, mas que age profissionalmente como se existissem. À semelhança dos médicos com os quais se depara ao longo de sua agonia e que, ali onde se encontra um homem a ser cuidado (um homem que sofre e que necessita de cuidados), só enxergam uma doença a ser eliminada, Ivan Ilitch também se mostra incapaz, durante toda sua vida como juiz, de levantar os olhos dos autos e dos códigos para ver os homens e seus problemas. Ele “aplica” o direito, mas não sabe (ou finge não saber) que o Direito não pode ser “aplicado” de uma forma mecânica. Sua prudência (no sentido moderno), que se manifesta em sua dócil submissão a um legalismo convenientemente apropriado ao carreirismo, é máxima imprudência (no sentido clássico). E por essa imprudência, Ivan Ilitch paga um preço alto. O preço da falta de sentido”.

Moribundo, reconstitui, na imaginação, suas origens, sua vida como estudante de Direito, os concursos públicos, as motivações que o levaram a eleger Prascóvia Fiódorovna como esposa: “Dizer que Ivan Ilitch se casou por ter se apaixonado pela moça e por ter encontrado nela compreensão para a sua concepção da vida, seria tão incorreto quanto afirmar que se consorciara porque a sua roda social aprovara o enlace. Esposou-a movido por suas próprias razões: o casamento lhe proporcionava particular satisfação e era visto como uma boa solução pelos seus amigos mais altamente colocados”. Nem por amor, nem somente por puro interesse, embora seja notória a importância que dava aos valores prezados pelos mais bem situados.

O magistrado não encontrou felicidade no lar. Passado o breve mar-de-rosas que fora a lua-de mel, o matrimônio se revelou perturbador: “E, não mais que um ano após o casamento, Ivan Ilitch chegou à conclusão de que a convivência familiar, embora ofereça certas vantagens, era uma coisa verdadeiramente complexa e difícil, para a qual é preciso elaborar uma relação definida, tal como perante o trabalho, a fim de se poder cumprir honradamente o dever, ou seja, levar-se uma vida que, pela correção, a sociedade aprove”. Problemas de ordem prática, soluções igualmente práticas!

Nada como refugiar-se no trabalho como forma de blindagem para evitar que algum incômodo nos perturbe e podermos assim, anestesiados, deixar a vida seguir seu curso, sob controle: “Todo o interesse da sua existência se concentrou no mundo judiciário e esse interesse o absorvia. A consciência da sua força, que permitia aniquilar quem ele quisesse, a imponência da sua entrada no tribunal, a deferência que lhe tributavam os subalternos, seus êxitos com superiores e subordinados e, sobretudo, a maestria com que conduzia os processos criminais e da qual se orgulhava – tudo isto lhe dava prazer e lhe enchia os dias, a par das palestras com os colegas, os jantares o [jogo] uíste. Assim a vida de Ivan Ilitch decorria da maneira que achava conveniente – agradável e digna”.

Sobre o contentamento que o jogo lhe proporcionava, confidencia-nos o autor: “A alegria que Ivan Ilitch encontrava no trabalho era a alegria da ambição; as alegrias da vida social eram as da vaidade; mas as verdadeiras alegrias eram as proporcionadas pelo uíste”. Entrevemos mais um pouco da alma do corretíssimo juiz Ivan Ilitch: ambicioso, vaidoso e frívolo!

Dentre as demais atividades nas quais encontrava prazer ocupavam-no uma inocente e tipicamente burguesa: a decoração e organização do lar; mas nem sequer nisso sua individualidade aflorava: “Teve a sorte, principalmente de poder comprar barato certas antigüidades, que emprestavam à casa um ar pronunciadamente aristocrático. (...) Na verdade, havia ali o mesmo que se encontra nas casas de gente remediada, mas que pretende aparentar opulência e apenas consegue que se pareçam extraordinariamente umas com as outras (...) enfim, tudo aquilo que as pessoas de certa classe possuem para parecer com as pessoas da mesma classe. A casa de Ivan Ilitch era uma perfeita imitação, mas ele a achava absolutamente original”.

Tudo corria relativamente bem na pacata e irretocável vida de Ivan Ilitch. Até que um dia, envolvido na arrumação da nova casa, ansioso por demonstrar a um operário como queria que um serviço fosse executado, deu um passo em falso, escorregou duma escada e deu uma pancadinha de lado, na moldura da janela. Na hora, não sentiu muito, apenas uma dorzinha boba. Mas após esse episódio, as dores foram se tornando cada vez mais intensas e insuportáveis. Apesar de ter se submetido a renomados especialistas, nada pôde fazer. A morte o rondava.

A inesperada condição de enfermo será extremamente favorável à observação, à avaliação isenta e imparcial dos relacionamentos cultivados com todos os que o cercavam, inclusive com seus colegas juízes. É com profundo desapontamento que Ivan constata que, indiferentes, a única coisa que importava mesmo era manter o enfadonho (mas necessário) protocolo de visitas e confabular sobre quem ocuparia o posto que ele deixará, bem como quem ficará com o cargo vago por aquele que o substituir, e assim por diante. Recapitulando seus valores, suas realizações e frustrações, conclui que “farinha do mesmo saco”, não teria agido diferente de seus interesseiros e ambiciosos amigos magistrados. Afundando num sofrimento desesperado, Ivan Ilitch se dá conta da insignificância de sua vida, da fragilidade de suas conquistas. Apesar de suas dores físicas serem terríveis, doía ainda mais a sua consciência moral. Próximo à finitude e com fome de imortalidade, a ânsia de encontrar propósito para sua breve e vulgar existência martelava-lhe o cérebro.

Foram três meses, de intensa agonia. Dependente de auxílio para tudo, inclusive para as constrangedoras necessidades fisiológicas, encontra na alma do singelo camponês Guerássin, ternura e, testemunha a bondade humana. Certa vez, agradecendo pelo desagradável préstimo, ouviu o mujique afirmar que fazia isso com prazer; que qualquer um faria. Essa ingenuidade o comovia profundamente. Acalmava-lhe a presença desse prestativo enfermeiro.

Sob o crivo de uma lucidez perturbadora, repassou sua vida: “E quanto mais longe da infância e mais perto do presente, tanto mais as alegrias que vivera lhe pareciam insignificantes e vazias. A começar pela faculdade de direito. Nela conhecera alguns momentos realmente bons: o contentamento, a amizade, as esperanças. Nos últimos anos, porém, tais momentos já se tornavam raros. Depois, no tempo do seu primeiro emprego, junto ao governador, gozara alguns belos momentos: amara uma mulher. Em seguida tudo se embrulhou e bem poucas eram as coisas boas. Para adiante, ainda menos. E, quanto mais avançava, mais escassas se faziam elas. Veio o casamento, um mero acidente e, com ele, a desilusão, o mau hálito da esposa, a sensualidade e a hipocrisia. E a monótona vida burocrática, as aperturas de dinheiro, e assim um ano, dois, dez, vinte, perfeitamente idênticos. E, à medida que a existência corria, tornava-se mais oca, mais tola. É como se eu tivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava. Exatamente isto. Perante a opinião pública, eu subia, mas na verdade, afundava. E agora cheguei ao fim – a sepultura me espera”.

Sem que ninguém visse: “Chorava a sua impotência, a sua terrível solidão, a crueldade de Deus, que o abandonava”. Vulnerável, clamava por carinho, piedade e, em silêncio, nutria um desejo inconfessável para um homem de respeito: queria ser cuidado como se fosse uma criança.

Buscar e encontrar o significado da vida é algo particular. O juiz Ivan Ilitch foi um homem que não atentou para a liberdade de poder escolher seu destino. Sem discutir, fez o que era para ser feito e pronto. Mas isso fora insuficiente para deixá-lo partir em paz. Não questionou o télos (propósito/objetivo/finalidade) de seus comparsas; “fechou” com a futilidade encantatória da classe dominante; almejada, sem pestanejar, por toda manada, ilusório alvo de imitação. Três horas antes de morrer, Ivan Ilitch vislumbra luz no fundo do saco escuro. Sensibiliza-o as lágrimas nos olhos do filho e da mulher, se apieda por eles: “e percebia que a sua vida não fora o que deveria ter sido, mas ainda podia ser reparada”. No instante em que adota uma atitude em relação ao sofrimento, algo fenomenal o liberta da fantasmagórica ameaça da vala-comum psíquica. Ah, a morte: “Que alegria!”. Ivan Ilitch recebe-a de braços abertos!

Saiba mais:

Tolstói, Leon – A morte de Ivan Ilitch / Leon Nikolaievitch Tolstói. Tradução de Vera Karam. Porto Alegre: L&PM, 2002.
Décourt, Luiz Venere – A Aceitação da Morte em Novela Russa - http://www.incor.usp.br/r-conteudo-medico.htm

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