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Charles Baudelaire e os Paraísos Artificiais

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
mitologia@esdc.com.br

Os etéreos “néctar e a ambrosia” eram bebida e alimento dos deuses.
Ao mortal que ousasse os ingerir era destinada a glória dos olímpicos
ou, em desmedida, a bestialidade humana.

O uso freqüente de substâncias que alteram a percepção consiste num perigoso exercício que aniquila a liberdade, tão cara a dignidade humana. Traremos as impressões de um espírito refinado e singular, que fez uso dessas emanações vegetais nos legando, numa lúcida experiência, a análise dos efeitos misteriosos e dos inevitáveis riscos que resultam de seu uso prolongado. O poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), famoso por sua magnífica Obra “As flores do Mal”, reunindo-se com os amigos no luxuoso Hotel Pimodan, desfrutou do haxixe (cânhamo indiano, cannabis), do ópio e do vinho.

As propriedades excitantes do cânhamo eram bem conhecidas do Antigo Egito e seu uso era muito difundido, sob diferentes nomes, na Índia, na Argélia e na Arábia Felix.

Em “Paraísos Artificiais”, o poeta relatará sua aventura sem, no entanto, deixar de falar sobre os “esforços sobre-humanos de vontade que lhe foi necessário empregar para escapar à danação a qual ele, imprudentemente, se havia devotado”.

Baudelaire considera que é mais importante conhecer a ação do veneno sobre a parte espiritual do homem: “Se naturezas grosseiras e embrutecidas pelo trabalho diário e sem encanto (refere-se a “embriaguez mais repugnante dos suburbanos que, com o cérebro carregado de fogo e glória, rolam ridiculamente nos lixos da rua”) encontram no ópio grande consolo qual não será então o seu efeito num espírito sutil e letrado, numa imaginação ardente e cultivada?”

A atmosfera que permeia a análise do sensível poeta não tem absolutamente nada em comum com o degradante ambiente ao qual estão expostos nossos jovens abandonados e desorientados, tanto pelas famílias quanto pelo Estado. Só para termos uma idéia da diferença dessas realidades, recomenda o aristocrata: “... submeter-se à sua ação apenas em ambientes ou circunstâncias favoráveis. Sendo toda alegria e todo bem-estar superabundantes, toda dor e toda angústia são imensamente profundas. Não se submeta a uma experiência como esta se tiver qualquer assunto desagradável a tratar, se seu espírito se encontrar entediado, se você tiver uma conta a pagar. Tenha (...) alguns cúmplices cujo talento intelectual se aproxime do seu. Suponho que você teve a precaução de escolher bem o seu momento para esta expedição aventurosa. Você não tem deveres a cumprir que exijam a pontualidade e a exatidão; nenhuma tristeza de família; nenhuma dor de amor. É preciso ter cuidado. Esta infelicidade (...), esta lembrança de um dever que reclama sua vontade, sua atenção a um momento determinado envenenarão seu prazer. A inquietação será transformada em angústia; a tristeza, em tortura. Se observadas todas estas condições preliminares, o tempo estiver bom, se você estiver em um ambiente favorável, como uma paisagem pitoresca ou um apartamento poeticamente decorado se, além disso, você puder contar com um pouco de música, então tudo é para o melhor”.

Ele descreve minuciosamente os sintomas de todas as fases pelas quais passam os usuários, desde os iniciantes aos veteranos: “As palavras mais simples, as idéias mais triviais tomam uma fisionomia nova e estranha; Semelhanças e aproximações incongruentes, impossíveis de serem percebidas, jogos de palavras intermináveis, tentativas de comicidade jorram continuamente de seu cérebro. O demônio o invadiu; é inútil resistir (...). De vez em quando, você ri de si mesmo, de sua ingenuidade e de sua loucura, e seus companheiros, se você os tem, riem igualmente de seu estado e do deles; mas, como eles não têm malícia, você não tem rancores”.

O adepto tem seus nervos abrandados, torna-se apático e é tomado por uma benevolência preguiçosa. O desejo é de imobilidade absoluta. Empreende esforços sobre-humanos para parecer igual aos outros. A percepção do tempo se altera completamente pela múltiplas sensações corpóreas e de idéias. Quanto a apatia que o invade e paralisa, o poeta atesta: “Horrível situação! Sentir o espírito fervilhar de idéias, e não mais poder atravessar a ponte que separa os campos imaginários do devaneio das colheitas positivas da ação! (...) um bravo guerreiro, insultado no que ele tem de mais caro e fascinado por uma fatalidade que lhe ordena que fique na cama, onde se consome numa raiva imponente!”

Diversas substâncias que hoje enquadraríamos como sendo “psicotrópicas” foram usadas desde os primórdios para fins religiosos ou terapêuticos (fármacos). Diz-se que as pitonisas, sacerdotisas do Templo de Apolo, em Delfos, as inalavam para conectarem-se mais facilmente com o divino. Às parturientes também eram administradas, a fim de aliviar suas dores. O fato é que Dioniso (Bacco) está entre nós há muito tempo. E hajam aspas! É Charles Baudelaire quem escreve: “Existe um deus misterioso nas fibras da videira. Como são grandes os espetáculos do vinho, iluminados pelo sol interior! Como é verdadeira e abrasadora esta segunda juventude que o homem dele retira! Mas como são, também, perigosas suas volúpias fulminantes e seus encantamentos enervantes. E, no entanto, digam, do fundo da alma e da consciência, juízes, legisladores, aristocratas, todos vocês a quem a felicidade torna doces, a quem a fortuna torna a virtude e a saúde fáceis, digam quem de vocês terá a coragem impiedosa de condenar o homem que bebe o gênio?”

Atento, chama a atenção para o fato de que “há bêbados perversos; são pessoas naturalmente perversas. O homem mau torna-se execrável, assim como o bom torna-se excelente.” E indaga: “Não é razoável pensar que as pessoas que nunca bebem vinho, ingênuas ou sistemáticas, são imbecis ou hipócritas; imbecis, isto é, homens que não conhecem nem a humanidade nem a natureza; hipócritas, isto é, comilões reprimidos, impostores da sobriedade, que bebem escondidos e têm algum vício oculto? Um homem que só bebe água tem um segredo a esconder de seus semelhantes”.

A análise de Baudelaire não tangencia o universo do usuário esporádico, daqueles que tornaram sagrado o profano hábito do cálice de vinho, da cerveja ou do whisky após o expediente ou mesmo do socializante e hilariante “baseadinho” ao pôr-do-sol. Estes, não se queimam, se bronzeiam. Mas o descontrolado habituée “irá apreciar os frutos apodrecidos de sua escravidão: (...) Todos os hábitos se transformam logo em necessidade. Aquele que puder recorrer a um veneno para pensar, em breve não poderá mais pensar sem veneno. É possível supor o terrível destino de um homem cuja imaginação paralisada não soubesse mais funcionar sem o recurso do haxixe ou do ópio?”

Salienta que o haxixe não produz em todos os homens os efeitos que descreve, mas que se ateve aos espíritos artísticos e filosóficos. Que há temperamentos nos quais se desenvolvem apenas uma loucura tumultuada, danças e gargalhadas. Segundo ele, essas pessoas tem um haxixe “muito material” e essas personalidades provocam escândalo: “Vi uma vez um magistrado respeitável, um homem honrado, como dizem de si próprios os aristocratas, um desses homens cuja gravidade artificial impõe-se sempre, no momento em que o haxixe o invadiu, pôr-se bruscamente a dançar um can-can dos mais indecentes. Revelou-se o monstro interior e verdadeiro. Este homem que julgava a ação de seus semelhantes, este togado havia aprendido can-can em segredo. O desenvolvimento do espírito poético, nunca será encontrado no haxixe destas pessoas”.

Como é a vontade, o órgão mais precioso que é “atacado” (sonhar e não realizar, não é nada), o poeta afirma conhecer bem a natureza humana para saber que um homem que pode, através de um atalho, “alcançar instantaneamente todos os bens do céu e da terra, não ganharia jamais a milésima parte destes bens pelo trabalho”. Hesiódico atesta: “É preciso, antes de tudo, viver e trabalhar”.

Baudelaire alerta que um Estado racional jamais poderia subsistir com o uso do haxixe: “Este não produz nem guerreiros nem cidadãos. Na verdade, o haxixe é proibido ao homem sob pena de degradação e morte intelectual, de transformar as condições primordiais de sua existência e romper o equilíbrio de suas faculdades com o meio. Se existisse um governo interessado em corromper os seus governados, bastaria encorajar o uso do haxixe. É possível imaginar um Estado onde todos os cidadãos se embriagassem de haxixe? Que cidadãos! Que guerreiros! Que legisladores!”. Hipócrita, omisso e perverso, ao se esquivar de discutir os inevitáveis “Paraísos Artificiais”, nosso Estado apresenta-se conivente aos “Infernos Reais”.

 

Saiba mais:

BAUDELAIRE, Charles. Paraísos Artificiais – O haxixe, o ópio e o vinho. Ed. L&PM Pocket (1998) São Paulo, SP.
RIBEIRO, Renato Janine (Titular de Filosofia Ética e Política da USP). Redução de danos. em: http://www.renatojanine.pro.br/Etica/reducao.html
FELIX, Luciene. "Origens da Religião e Pólis Grega" - Vídeo. www.esdc.com.br em "Conhecimento Sem Fronteiras". São Paulo, 2007.

Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC
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